Em 70 anos, o que menos mudou foi o apresentador de programa de auditório
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A televisão brasileira deve muito ao rádio. Quase toda a programação dos primórdios foi inspirada em atrações que já existiam antes, mas eram apenas ouvidas. Do teleteatro aos shows de calouros, das telenovelas aos programas de humor, qualquer exame de DNA comprova que a TV é filha do rádio.
O teleteatro não durou muito, mas ajudou a formar profissionais e inspirou muitos especiais de TV feitos até hoje. As telenovelas progrediram, ganharam cara brasileira no final da década de 1960 e se tornaram o gênero mais importante da televisão. Os programas de humor demoraram um pouco mais para se descolar do rádio, mas também encontraram uma feição própria e original.
Só os programas de auditório não mudaram - ou mudaram muito pouco desde a Era do Rádio. Por quê? Vou arriscar algumas explicações.
É um dos gêneros mais importantes da TV, talvez aquele que exponha de forma mais explícita as melhores e piores características desse meio. Não por acaso, quando se pensa em televisão, a primeira coisa que vem à cabeça é a figura do apresentador, no centro do palco, dirigindo-se ao público.
Como já escrevi, quase todos os programas de auditório hoje são gravados, o que explica uma provocação que Faustão adora fazer aos colegas do ramo: "Quem sabe faz ao vivo".
Há vantagens e desvantagens em ambos as formas, mas a essência do programa de auditório —o "calor" oferecido pelo espectador presente no estúdio— não muda muito, seja ele ao vivo ou gravado.
O público no auditório oferece um atestado de "verdade" ao que o espectador vê pela televisão. Sabemos que esses espectadores são orientados por "animadores" a aplaudir, gritar ou vaiar, mas muitas vezes a mágica funciona e sentimos que também estamos ali.
Não à toa, o programa de auditório é o espaço preferencial da chamada publicidade "testemunhal", feita pelo próprio apresentador. Também é a vitrine ideal para os lançamentos pautados pela indústria musical.
Os reis do auditório
Chacrinha (1917-1988) e Silvio Santos, ambos formados no rádio, são as duas figuras mais importantes na consolidação do programa de auditório na televisão tal como conhecemos até hoje.
O auditório de Chacrinha sempre foi uma mistura de praça com circo. Confusão, alegria, exposição de talentos e exploração da miséria humana, associada a promessas de assistência.
O auditório de Silvio também tem esses elementos, mas acrescido de uma embalagem comercial sólida (o Baú da Felicidade) e das promessas de dinheiro fácil - seja atirado explicitamente na direção do público, seja em "games" no palco.
Pense em qualquer apresentador de programa de auditório popular e veja se ele não bebeu, de forma combinada, em alguma destas duas fontes.
É importante observar que o show de talentos, uma das marcas mais fortes de qualquer programa de auditório, nasceu no rádio.
Como lembra o pesquisador Sergio Cabral em sua biografia de Ary Barroso (1903-1964), o compositor de "Aquarela do Brasil" já usava o gongo para rir dos mais desafinados em seu programa de calouros no rádio, na década de 1940.
Chacrinha fez fama na TV desde a década de 1960 com a "buzina" que trouxe do rádio, já então usada para interromper números musicais de cantores amadores. A inspiração, segundo a biografia escrita por Denílson Monteiro, foi o gongo de Ary Barroso.
O rei do trash
Outra ideia importante e imutável por trás dos programas de auditório é que as pessoas são movidas pelo impulso ou interesse de aparecer na TV - e aceitam fazer qualquer coisa para alcançar este objetivo.
Quem melhor explorou esse conceito foi o americano Chuck Barris (1929-2017). Ele é o criador de algumas atrações, lançadas entre as décadas de 1960 e 1970, que se tornaram marcos de programas de auditório, entre as quais "The Dating Game" e "The Gong Show".
Barris dizia à sua equipe que muitos espectadores comiam enquanto assistiam TV. "Se você for capaz de mostrar alguma coisa que interrompa o garfo a meio caminho entre o prato e a boca uma vez a cada meia hora, você terá um programa de sucesso".
"The Dating Game", que Silvio Santos batizou de "Namoro na TV", até hoje é recriado e reciclado em diferentes versões, sempre com o mesmo objetivo: divertir o espectador com o constrangimento de candidatos dispostos a encontrar um amor diante das câmeras.
Já em "The Gong Show", candidatos amadores exibiam as suas habilidades artísticas para um trio de jurados, entre os quais o próprio Chuck Barris, que faziam de tudo para perturbá-los e, quando não os suportavam mais, soavam um gongo.
Ninguém como Silvio Santos, com o seu "Show de Calouros", se aproximou tanto do conceito de entretenimento desenvolvido por Chuck Barris, baseado na exposição pública do vexame de figuras simplórias.
É interessante observar como, até hoje, em muitos "shows de talentos" mais modernos, como "Ídolos" e "X Factor", entre outros, é comum ver candidatos horríveis nos primeiros episódios, selecionados claramente para causar efeito cômico.
Quando Barris morreu, o jornal "The New York Times" recordou a sua falta de apreço pelos críticos de televisão. "Na minha opinião, uma crítica positiva de um game show é o beijo da morte. Se, por uma estranha razão, o crítico gostou, o público não vai gostar. Uma crítica bem negativa significa que o programa vai ficar no ar por anos."
Mulheres em minoria
O programa de auditório foi quase sempre um território masculino. Poucas mulheres foram além do chamado "programa feminino", quase sempre matinal ou vespertino, e conseguiram se destacar e ser respeitadas atuando neste terreno.
Três nomes me ocorrem quando penso em mulheres que conseguiram introduzir algumas novidades no gênero: Hebe Camargo (1929-2012), com seu programa em várias emissoras desde as décadas de 1950, Regina Casé, com o seu "Esquenta!" (2011-17), e Fernanda Lima, com "Amor & Sexo" (2009-18).
Sobre Hebe já se falou muito - a apresentadora alcançou o status de mito e ganhou um filme e uma série de TV. Sobre "Amor & Sexo", igualmente, já se discutiu demais e, infelizmente, o programa virou instrumento de "guerra cultural" na mão de espectadores mais conservadores.
Registro duas ou três coisas sobre a experiência do "Esquenta!". Havia algo de politicamente correto na proposta de exibir, em um domingo atrás do outro, experiências de inclusão social, superação de dramas individuais e vitórias contra a desigualdade. Mas o programa não fazia assistencialismo nem procurava vender ilusões.
Como escrevi em 2013, quente e colorido como não se via desde Chacrinha, o auditório de Regina exalava uma espontaneidade que parece mais natural que a média. E, ainda que editado, vendia uma alegria que não se via na concorrência.
Do ponto de vista musical também vi uma novidade na insistência com números de samba, pagode, funk e hip-hop. Não que fossem artistas fora do mercado, mas estavam longe de representar a música fácil e óbvia que toca em todos os outros programas.
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