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Fernando Meirelles diz que 'ator ChatGPT' é 'destrutivo' ao cinema

Um Francisco totalmente virtual no cinema, tal qual o desta imagem? O diretor de "Dois Papas" é contra - Reprodução/Reddit/Midjourney
Um Francisco totalmente virtual no cinema, tal qual o desta imagem? O diretor de 'Dois Papas' é contra Imagem: Reprodução/Reddit/Midjourney

Colunista do UOL

17/05/2023 04h00

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Já imaginou o Zé Pequeno, de "Cidade de Deus", feito em inteligência artificial (AI, da sigla em inglês)? Ou "Dois Papas" sem Jonathan Pryce, mas com um Francisco totalmente virtual?

O advento do ChatGPT é apenas um dos sintomas: a tecnologia agora está chegando à produção de filmes e séries.

Quem já se posiciona a favor de uma regulamentação é Fernando Meirelles, cineasta brasileiro responsável pelos dois longas-metragens citados — e também "O Jardineiro Fiel" e "Ensaio Sobre a Cegueira", entre outros.

"Pessoalmente, não teria nenhum interesse em assistir a histórias criadas por AI, com atores digitais se passando por humanos, mas não devo ser a regra", alerta o diretor e produtor em entrevista exclusiva a Splash.

O novo uso da inteligência artificial na atuação é um passo além daquele que já nos acostumamos a ver, com a melhora da captura de movimentos e da computação gráfica. Trata-se de um personagem 100% criado digitalmente, tal qual justamente o recente "deep fake" do papa Francisco usando um estiloso casaco — só que em movimento e falando, como qualquer ator real.

"Isso poderá ser muito destrutivo se não agirmos rápido para controlar seu uso. Uma ideia seria o uso de um selo tipo 'AI Free' [livre de AI], ou um aviso: 'Atenção: esse filme contém 35% de AI'"

Meirelles elogia serviços de streaming, mas defende que Brasil aprove regulação. "Nos moldes do que fizeram a França, a Alemanha e outros países", explica o cineasta, citando dois países que obrigaram investimentos mínimos em produção local, entre outras regras.

Ele elogia os serviços por, segundo ele, ampliarem as oportunidades de trabalho. "[Elas] viabilizaram as salas de roteiristas, o que é muito importante para a formação de novos talentos", comenta — ressaltando que esse modelo foi levado das séries de TV, onde já era comum, para outros formatos.

Fernando Meirelles já trabalhou em parceria com a Netflix e atualmente está em projetos com AppleTV+ e HBO Max.

Meirelles - Peter Mountain/divulgação/Netflix - Peter Mountain/divulgação/Netflix
'Dois Papas', da Netflix, foi o último filme dirigido por Fernando Meirelles - e com atores de carne e osso
Imagem: Peter Mountain/divulgação/Netflix

Filmes de qualidade do streaming deveriam passar pelos cinemas, defende Meirelles. Braço de distribuição da produtora do diretor, a O2 Play está atuando com o lançamento nos cinemas brasileiros de filmes exclusivos de Netflix e Mubi.

A proposta é um pedágio de um curto período antes de chegar às plataformas. "Filmes que tenham qualidade ficariam duas ou três semanas em cartaz antes de ir para a plataforma. Isso traria um ganho para todos os envolvidos - produtores, exibidores, os próprios streamings e o público."

Confira outros temas da entrevista abaixo.

Por que trabalhar fora do Brasil? "Meu interesse em dirigir fora tem motivações diversas: gosto de outros países pela vivência de culturas e profissionais diferentes. Fiz bons amigos neste processo. Gosto de poder trabalhar com atores que admiro como [Anthony] Hopkins, Mark Ruffalo, Colin Farrell, Robert Downey Jr., Rachel Weisz, Jude Law e outros. [Mas] Continuo dirigindo e produzindo no Brasil para poder estar sempre olhando e refletindo sobre o nosso país."

O que falta para a produção brasileira? "Qualidade e originalidade. Talvez fazer diferente seja mais importante do que fazer bem feito. O fato de falarmos português dificulta nossa entrada, mas projetos que sejam únicos, que só poderiam ser rodados no Brasil, são um bom passaporte. O Brasil tem muitas histórias que são só nossas. No momento há uma enxurrada de filmes e séries sendo feitas com temáticas ligadas à Amazônia, alguns destes podem emplacar forte."

Há sempre aquela dica do Leon Tolstoi: 'Cante a sua aldeia e será universal'. Foi um pouco o que aconteceu com 'Cidade de Deus'

Como o streaming mudou a indústria: "O streaming transformou a forma como as produções são criadas, distribuídas e consumidas. As mudanças estão mais ligadas às tecnologias digitais do que ao impacto das plataformas".

Vantagens de trabalhar com Netflix, HBO Max, AppleTV+ e mais: "A vantagem é ter financiamento garantido para o desenvolvimento dos projetos, com altas chances de evoluírem para a produção. Os streamings viabilizaram as salas de roteiristas, o que é muito importante para a formação de novos talentos. Numa sala há um roteirista chefe, que distribui trabalho para uma equipe de mais quatro ou cinco roteiristas. Essa troca não era comum fora das televisões."

"O lado ruim é que faz falta uma regulamentação": "Aqui os criadores cedem todos os direitos em perpetuidade - a longo prazo, quem se dedicar a vida toda para streamings não será dono do próprio trabalho. Os serviços também não contribuem com o Condecine, taxa que financia o setor. A boa notícia é que há gente boa trabalhando nisso e alguns deputados e senadores já estão atentos, apesar do lobby dessas empresas. Como é uma atividade nova, como todas as outras, ainda precisa de regras".

Salas de cinema podem ajudar o streaming: "Hoje alguns exibidores já entenderam que pela qualidade dos filmes, mesmo com um período de exclusividade menor, há sentido em exibir. Por outro lado, parece haver nos EUA um movimento das plataformas de investir em exibição em salas como forma de rentabilizar suas produções. Dois ou três ingressos vendidos equivalem a um mês de assinatura. Talvez esse seja o equilíbrio perfeito. Filmes que tenham qualidade ficariam duas ou três semanas em cartaz antes de ir para a internet. Traria um ganho para todos os envolvidos - produtores, exibidores, os próprios streamings e o público".

Em 2020, Meirelles afirmou que o cinema ficou elitista. Tem como mudar isso? "Não. Com o salário a R$ 1.300 e o ingresso médio a R$ 35, acho difícil a situação ser revertida. As salas de cinema continuarão sendo algo da classe média para cima."

Entrevista editada para maior clareza e objetividade.

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