DVD virou 'tóxico' e definha no Brasil, mas fãs buscam manter a chama viva
Há dez, 15 anos, o costume de dar filmes de presente ainda era comum. As locadoras, mesmo que já estivessem minguando, eram um oásis para os cinéfilos. Essa história acabou. Neste começo de 2024, DVDs e Blu-rays de longas-metragens e séries praticamente sumiram das casas dos brasileiros, enquanto os grandes estúdios deixaram de vender a mídia física por aqui.
Decretar a morte da mídia física para vídeo é tentador, ainda que o formato continue existindo no setor de games. Seria a repetição de um artigo publicado pela Variety em 2006, que noticiou o "falecimento" do velho VHS. Alguns dos mesmos sinais podem ser encontrados no atual momento.
Grandes estúdios, como Disney, Warner Bros. e Universal Pictures, se retiraram do mercado de discos no Brasil e na América Latina nos últimos anos. Hoje é quase impossível encontrar os blockbusters mais recentes em DVD.
Existem apenas empresas menores, independentes - como Versátil, Obras-Primas do Cinema e Classicline - que lançam títulos mais antigos, chamados de "catálogo". Não se engane: essas empresas apenas embalam no Brasil, deixando a fabricação para o exterior. As tiragens são pequenas, muitas vezes de 500 unidades, e preços de "lançamento" que partem de R$ 60 no DVD e R$ 100 no BR.
Praticamente não há mais a venda em lojas físicas, enquanto muitos dos varejistas online não repetem as ações de marketing ou a disponibilidade do passado. Livrarias como Cultura e Saraiva, que eram ótimos pontos para encontrar os discos, foram engolidos por suas próprias crises. As locadoras? Salvo raríssimas exceções, não existem mais. Já os tocadores de Blu-ray novos à venda são uma raridade.
Crise até com o Tio Sam
O mercado dos EUA, que sempre foi a shangri-lá do setor, também encolhe a olhos vistos. A Netflix encerrou o serviço de assinatura de DVDs pelo correio em outubro passado. Iniciado em 1998, o modelo teve um total de 40 milhões de assinantes ao longo dos anos. No final, tinha entre 1,1 e 1,3 milhões, de acordo com a Associated Press. Além disso, lojistas norte-americanos como a Best Buy encerraram a venda em suas lojas físicas e na digital, enquanto outros varejistas diminuíram bastante o espaço dedicado à mídia.
Os carrascos dessa morte lenta são muitos. O primeiro é a pirataria, que ganhou tração com os camelôs e os discos piratas, mas que rapidamente evoluiu para o torrent e a IPTV quando a internet banda larga avançou. O próprio vídeo sob demanda, capitaneado pela Netflix, mudou o comportamento dos fãs de filmes, que passaram a ver menos importância no possuir físico. A adesão ao modelo avançou durante a pandemia, e foi muito incentivado pelos próprios grandes grupos de mídia. Disney, Warner Bros., Paramount e outros inflaram a chamada "guerra do streaming", com preços baixos e excesso de oferta de novidades.
Hoje vemos um aumento no custo do vídeo sob demanda e plataformas retirando conteúdos de seus catálogos para diminuir gastos.
Eles não deixam o DVD morrer
No caso do VHS, o já mencionado obituário colocava a "culpa" da morte na "solidão". Afinal, o público percebeu a clara vantagem de migrar para os discos, deixando a velha fita abandonada. Não podemos dizer o mesmo do DVD e do Blu-ray. Há alguns que se recusam a deixar a mídia morrer - até porque o streaming não é, necessariamente, um substituto.
O primeiro grupo é formado pelos colecionadores. São pessoas que gostam das edições físicas e que não querem depender da vontade das grandes corporações (que podem tirar um filme streaming a qualquer momento) ou da qualidade da conexão com a internet. É para eles que ainda se mantém a pequena indústria independente nacional.
Entre eles está Juliano Vasconcellos, o Jotacê, arquiteto e produtor de conteúdo gaúcho responsável pelo Blog do Jotacê. O site sempre foi um porto seguro para os colecionadores, propagando a mensagem deles nas eras de vacas gordas do mercado. Contudo, esse cenário ficou desalentador.
"Hoje, o nicho de colecionismo, que já estava se retraindo antes da pandemia, é ainda menor. Muitos colecionadores tradicionais da nossa comunidade pararam de colecionar ou até estão se desfazendo das coleções", compartilha Jotacê. "Gente que estava colecionando só importados nem isso estão fazendo mais, pois nem lá fora os filmes estão saindo com o nosso idioma".
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Quero receber"Existem colecionadores mais pessimistas, projetando um futuro no qual o público consumidor não vai dar conta de manter as empresas que ainda existem por aqui. Os otimistas acham que essa maré ruim vai passar e que em algum momento as pessoas vão perceber que a mídia física ainda é a melhor solução para ser ter o seu filme preferido".
Quando questionado em qual grupo se alinha, ele é sincero:
Eu já estive mais otimista, desanimei muito no último ano. É o pior momento desde que comecei a colecionar. Jotacê
Locadoras da resistência
O segundo grupo de entusiastas é formado pelos cinéfilos, que apenas querem ver ou rever os clássicos (ou não tão clássicos) do passado. Muitos dos filmes e séries não estão disponíveis nas plataformas de streaming, ou mesmo nos canais lineares. Em alguns casos não há demanda que justifique essa disponibilidade, em outros há uma falta de vontade dos distribuidores ou os direitos se perderam em enroscos jurídicos.
A eles se juntam os mais idosos, que não migraram para a internet e mantêm velhos hábitos.
Para essa gente, uma saída é ir a uma locadora. Poucas sobraram, e encontrá-las é como entrar em uma máquina do tempo. A coluna visitou uma delas, a Vídeo Paradiso, localizada em Santos, litoral de São Paulo. A loja existe desde 1991 e parece que parou em 2012. Percebemos que o tempo passou apenas pela presença de alguns filmes mais recentes, pó acumulado e o odor, que agora mais lembra o de um sebo.
"[O nosso público] São as pessoas que têm a consciência de que não vão encontrar as coisas que tenho aqui em outros lugares. Não tem como comparar", relata Marcelo Rosendo Datoguêa, proprietário da locadora. "Deveria ter restado um mercado de videolocadoras de nicho maior do que tem."
A Paradiso foi frequentada por cerca de 40 clientes em dezembro. O acervo da locadora é composto por cerca de 22 mil DVDs e quase 3 mil Blu-rays, além de incontáveis VHSs. O aluguel custa até R$ 8 por disco.
Para comparação, o catálogo da Netflix no Brasil conta com cerca de 6.800 títulos, de acordo com o Unofficial Netflix Online Global Search. Já a Apple TV, o equivalente às locadoras na era da internet, possui mais de 30 mil filmes nos EUA, segundo o Just Watch. Não há dados sobre a versão nacional da loja online, mas podemos acreditar que o número daqui deve ser bem menor - e dominado pelos lançamentos dos últimos anos.
"O streaming atende perfeitamente a maioria dos consumidores. A pessoa só quer ver filme novo, quer ver filme americano. Eu conheço isso", resigna-se Datoguêa. Ele, porém, não consegue entender os fãs que recorrem à pirataria e torrents para ver as raridades: "Quem gosta de mais profundidade do cinema, que se diz cinéfilo, eu acho um absurdo não procurar a gente, procurar outras formas [ilegais]. [Mas] O brasileiro está nem aí se é ilegal ou se não é. As pessoas não gostam de pagar para ver filmes. Essa é a verdade".
Em parte, o empresário crê que criou-se uma demonização do ato de comprar discos.
A mídia física virou tóxica. As pessoas não querem e há um patrulhamento. Cultura não é isso. A falta da mídia física vai ajudar a cultura média do brasileiro ir mais para baixo do que já está. Marcelo Datoguêa
Ainda assim, a Vídeo Paradiso continua resistindo. "Não é por amor", afirma o proprietário, que diz manter a loja apenas porque o espaço é próprio e ainda traz alguma receita. Porém, nos últimos anos, Datoguêa passou a ter o trabalho na engenharia como a sua principal fonte de renda.
É assim que o DVD e o Blu-ray seguem com a esperança de fugirem do mesmo destino do VHS.
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