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Dubladores lutam por regulamentação do uso da IA: 'Risco de perda cultural'

Certamente você recentemente acessou algum vídeo no YouTube e se deparou com uma estranha voz mecanizada. Ou, talvez, viu uma publicação no TikTok com um ator ou esportista internacional famoso falando português. Esses são os primeiros exemplos de dublagens totalmente feitas por inteligência artificial, e os atores de voz brasileiros estão se unindo para pedir a regulamentação dessa prática.

O que está acontecendo

Lançado agora em janeiro, o movimento Dublagem Viva reúne profissionais desse setor - incluindo não só atores e atrizes de voz, mas também diretores, tradutores, mixadores e outras profissões correlatas. Diversos dubladores já demonstraram o seu apoio nas redes sociais, principalmente no Instagram.

Trata-se de uma versão brasileira do "Real Dubbing? Real Voices!", abaixo-assinado internacional criado pela United Voice Artists (que representa sindicatos e associações do setor) e que já conta com mais de 120 mil assinaturas.

Em seu manifesto, o Dublagem Viva defende que a inteligência artificial "não deve ser usada para reproduzir vozes de atores em outros idiomas para língua portuguesa com a finalidade de substituir os dubladores."

O texto pede que uma regulamentação seja criada em conjunto com todos os setores envolvidos, incluindo distribuidores, estúdios e a sociedade.

Por fim, o movimento demanda a preservação do nosso idioma, que poderia ser afetado com traduções feitas fora do país, seja por máquinas ou pessoas.

Profissionais ouvidos por esta coluna explicaram que também temem o uso de suas vozes para Machine Learning. Dessa forma, seus vocábulos poderiam ser utilizados como treinamento de máquina, sendo aplicados em outras dublagens sem qualquer autorização ou pagamento ao detentor da locução original.

O assunto não é novo: em 2023, o uso da IA no audiovisual foi um dos motivos que levaram os atores de Hollywood a entrarem em greve por quase quatro meses.

Momento de transformação

"A IA, inevitavelmente, um dia chegaria ao nosso mundo", diz Wendel Bezerra, dublador, diretor de dublagem e CEO do estúdio UniDub. Talvez você não conheça o nome, mas certamente reconhece a voz de Bezerra por personagens como Bob Esponja e Goku, da saga "Dragon Ball". "Eu vejo isso com naturalidade, como algo que a tecnologia, o futuro e o desenvolvimento trariam. E sem desespero, porque ainda é muito embrionário".

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Não vale a pena tentar impedir o crescimento e o desenvolvimento de uma tecnologia, porque isso é impossível. Agora, isso precisa ser coordenado, precisa ser combinado. Wendel Bezerra

Ângela Couto, dubladora e porta-voz do Dublagem Viva, tem uma opinião mais contundente. "[Há] Um risco muito grande de desemprego, além de uma perda cultural gigantesca", prevê.

"Dublagem Viva": Campanha cobra regulamentação da inteligência artificial nas dublagens brasileiras
"Dublagem Viva": Campanha cobra regulamentação da inteligência artificial nas dublagens brasileiras Imagem: Divulgação

De acordo com ambos, não há ainda quem utilize "a sério" dublagens totalmente feitas por IA em filmes e séries. Contudo, esta coluna de Splash apurou que existem, sim, distribuidores menores que estão fazendo estudos para o uso deste tipo de ferramenta. Uma das empresas de tecnologia que já presta o serviço é a Rask AI, baseada em Delaware, nos EUA.

"Basicamente, você consegue uma tradução em questão de minutos", gaba-se a CEO da companhia, Maria Chmir. "Tudo enquanto você utiliza o seu DNA vocal original, graças a nossa incrível ferramenta de clonagem de voz. [...] Sem atores envolvidos".

A "clonagem" utiliza o timbre e os fonemas verdadeiros do interlocutor, substituindo-os por falas localizadas em outros idiomas. No mesmo processo, o movimento da boca é modificado para se encaixar mais naturalmente nas novas palavras. De acordo com o site da Rask, um pacote "profissional" para a localização de 100 minutos de conteúdo (que é a duração de um longa-metragem) custa US$ 140 ao mês (cerca de R$ 700).

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"Já temos mais de 750 mil usuários traduzindo seu conteúdo de vídeo e áudio para alcançar novos públicos em todo o mundo com a nossa ajuda", compartilha Chmir.

A ferramenta substitui totalmente o processo normal de dublagem, que envolve tradução, adaptação do texto (inclusive para caber no movimento original dos lábios), identificação de dubladores adequados, atuação de voz, gravação, mixagem e diversas outras etapas de produção.

A Rask AI informa que ao menos um filme já foi inteiramente dublado por IA: "A Lenda do Akam", produção francesa que utiliza cenas gravadas na natureza para contar uma história de fantasia.

O lançamento no Brasil está agendado para maio, e a coluna já teve acesso a algumas cenas. Há diálogos que não soam naturais ou que estão fora de tom, incluindo o momento no qual um personagem solta um "uh-la-la", expressão característica do idioma francês. No entanto, em outros trechos, a localização surpreende ao utilizar gírias muito brasileiras que não têm relação com o original, como "lá ele", "meu rei" e "mermão" - ainda que não combinem com o contexto.

"Em um vídeo simples, muitas vezes a gente já vê algo esquisito, processado, imagina num filme que exige uma imersão do espectador, que exige uma interpretação", comenta Wendel Bezerra.

Para o dublador, existe uma parte da equação que a inteligência artificial deixa de fora: a arte. "[Uma ficção] exige uma interpretação, muitas vezes onde você valoriza uma palavra ou dá uma entonação. Isso é diferente numa língua para a outra", exemplifica. "Imprimir a alma, energia, criatividade, empatia, sensibilidade e comunicação são coisas que só o ser humano pode fazer".

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Há também casos, principalmente no humor, nos quais os textos precisam ser totalmente adaptados para continuarem entretendo no novo idioma. Afinal, uma piada alemã ou norte-americana nem sempre fará sentido para o público do Brasil.

Quem melhor nos representa do que nós mesmos, como humanos? [...] A voz conecta e comove, cativa, aproxima e cria identidade com quem assiste. Ângela Couto

Remuneração na berlinda

Outra pendência no uso da IA na dublagem fica por conta do pagamento de direitos, inclusive os conexos. No exemplo da clonagem de voz, a dúvida é se os intérpretes originais deveriam ou não serem remunerados pelas localizações em outras línguas.

Wendel Bezerra é o dublador de atores e personagens como Bob Esponja, Goku, Robert Pattinson e diversos outros
Wendel Bezerra é o dublador de atores e personagens como Bob Esponja, Goku, Robert Pattinson e diversos outros Imagem: Instagram/Reprodução

"Você precisa da autorização legal do ator original", acredita Bezerra, que adiciona as complicações ligadas a essa necessidade. "Vocês já viram os créditos de um filme? Quantas pessoas têm, quantas pessoas falam? Você tem que fazer isso no filme inteiro, em todas as pessoas que estão no restaurante, em todas as pessoas que estão na cena de briga, em todas as pessoas que estão na rua, em todas as pessoas que estão num bar, num estádio de futebol? Não é simples, não é fácil e talvez não seja economicamente viável."

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No caso dos dubladores brasileiros, o temor é que haja a utilização da biometria vocal para o aprendizado de máquina, criando uma dublagem totalmente artificial com vozes que possuem donos e são reconhecidas pelo público.

"Os contratos começaram a conter cláusulas fazendo referência à alimentação de IA generativa", alerta Ângela Couto. "Isso significa que a voz poderia ser usada na criação de outros produtos que foram descritos no contrato e que os artistas não teriam conhecimento, já que também é dito que abrimos mão de qualquer direito futuro".

"Se houver transparência na construção, poderemos saber se houve uso de voz de artistas brasileiros e exigir que se estabeleça critérios para o consentimento e compensação", complementa Couto.

Caso as limitações técnicas, burocráticas e contratuais sejam superadas, Wendel Bezerra se mostra aberto a até pensar na possibilidade: "De repente, eu posso vender a minha voz para colocar no Bob Esponja pelos próximos 50 anos. Eu vou ganhar por isso e não vou gravar mais. Vou ter mais tempo para fazer outros trabalhos, outros projetos, ou viajar enquanto estou ganhando por ter vendido o uso da voz especificamente para o Bob Esponja".

Se no caso do Bezerra esta ainda é uma conjectura, para James Earl Jones já é uma realidade. O ator norte-americano, que tem 93 anos de idade e é famoso por ser a voz original de Darth Vader, anunciou a aposentadoria em 2022. Junto, ele fechou um acordo com a Disney para que o estúdio pudesse sintetizar a sua biometria vocal em futuras aparições do vilão de "Star Wars".

Faz sentido para um personagem que renunciou à sua própria humanidade.

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