Cinemas não rendem para Apple: lançamentos fracassam e futuro é incerto
A trajetória da Apple, empresa por trás do iPhone, é marcada por grandes sucessos, mas também por fracassos notáveis, como o computador Lisa, o assistente pessoal Newton e o videogame Pippin. Em 2024, mais uma iniciativa da companhia fundada por Steve Jobs se junta a essa lista de empreendimentos malsucedidos: a incursão no mercado de filmes para cinema.
De acordo com a Bloomberg, a corporação está repensando a sua estratégia para a telona após produções como "Assassinos da Lua das Flores", "Napoleão" e "Como Vender a Lua" não alcançarem as metas financeiras. Por isso, "Lobos", estrelado por George Clooney e Brad Pitt, teve sua estreia nos cinemas cancelada, sendo lançado diretamente no Apple TV+.
A intenção de investir cerca de US$ 1 bilhão (R$ 5,42 bilhões) anuais em filmes permanece inalterada, segundo a reportagem. No entanto, a maioria das produções será exibida em um número reduzido de salas nos Estados Unidos, com seu maior alcance sendo garantido pelo streaming. A principal exceção será "F1", filme estrelado por Brad Pitt e ambientado na maior categoria do automobilismo mundial. Com um orçamento estimado em US$ 300 milhões (R$ 1,6 bilhão), a produção, dirigida por Joseph Kosinski (de "Top Gun: Maverick"), chegará primeiro aos cinemas em junho de 2025. No máximo, um ou dois longas por ano terão o mesmo tratamento —isso se não houver novas mudanças.
Dos computadores ao audiovisual
Trata-se de uma mudança de rota em um caminho que sempre chamou a atenção por sua peculiaridade. Fundada em 1977 por Steve Jobs e Steve Wozniak na cidade de Cupertino, na Califórnia, a Apple começou com a intenção de transformar os computadores —até então enormes e desajeitados— em objetos do consumo diário das pessoas. Foi apenas nos anos 2000, com a introdução de produtos como iPod e o iPhone, que a companhia finalmente cumpriu com esse objetivo.
O campo das artes performáticas surgiu no radar de Jobs junto com o tocador de músicas. Parte da revolução com o iPod envolveu justamente mudar o paradigma da distribuição das canções, o que, no fim do dia, colocou a pirataria em segundo plano e revitalizou a indústria musical por meio do digital. O Spotify hoje corre porque, há 23 anos, o iTunes começou a caminhar.
A opção de colocar vídeo à venda dentro do aplicativo veio em 2005. Em 2019, quando as gigantes de tecnologia estavam buscando imitar o sucesso da Netflix, lançar o Apple TV+ com filmes e séries originais soou mais como uma obrigação do que como um foco real da empresa, agora liderada pelo CEO Tim Cook.
Não é fácil analisar a função de um serviço de vídeo sob demanda por assinatura dentro da estratégia geral da Apple, que nunca se valeu da relação já construída com os donos de conteúdo para popular o TV+, preferindo deixá-los do lado de fora. Para o canal próprio, Cook e sua equipe apostaram em títulos totalmente exclusivos e inéditos, com poucas franquias pré-estabelecidas e um volume relativamente pequeno de lançamentos.
Seja como for, a corporação —que tem um valor de mercado de US$ 3,45 trilhões (R$ 18,7 trilhões), o que representa 70% a mais que o PIB (a soma de todas as riquezas produzidas por um país) do Brasil em 2023— pode destinar um orçamento extraordinário para esse setor, algo fora do alcance dos conglomerados de entretenimento tradicionais e até mesmo da própria Netflix.
A empresa nunca divulgou números específicos sobre o streaming, mas a sua divisão de serviços —que inclui as assinaturas do iCloud, vendas do iTunes, transações da Apple TV como um todo e muito mais— vai muito bem, obrigado. De acordo com dados compilados do Statista, esses produtos representavam 6,52% do faturamento anual da Apple nos primeiros três meses de 2012. Era o menor setor no quesito. Hoje, com 28,23% registrados no terceiro trimestre deste ano, perde apenas para a seção dos iPhones, ficando à frente dos computadores e dos tablets. Isso em uma companhia que, no mesmo período, pulou de uma receita anual de US$ 164 bilhões (R$ 892 bilhões, no câmbio atual) para US$ 385 bilhões (R$ 2 trilhões).
Nesse cenário, o TV+ se torna um complemento estratégico na exploração de uma base de usuários, que, em vez de adquirir um novo smartphone a cada dois anos ou um computador a cada cinco, agora paga por assinaturas todos os meses.
Por que os cinemas, Apple?
Entrar em um modelo centenário de distribuição nunca foi um ponto primordial da Apple. Todavia, acabou sendo necessário.
Ao se aproximar dos principais cineastas de Hollywood, a companhia percebeu que eles estavam cada vez mais insatisfeitos com o modelo da Netflix, com lançamentos direto para a tela pequena. Ao mesmo tempo, os grandes estúdios já estavam com menos fôlego financeiro para bancar projetos grandiosos movidos mais pelo ego de diretores ou produtores do que por franquias consolidadas, que oferecem um retorno mais previsível.
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Quero receberMomento perfeito para prometer a telona em troca de nomes como Martin Scorsese (de "Taxi Driver"), Dexter Fletcher ("Rocketman"), Ridley Scott ("Gladiador"), Jon Watts ("Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa"), George Clooney, Brad Pitt, Matthew Vaughn ("Kingsman: Serviço Secreto"), Matt Damon, Steve McQueen ("12 Anos de Escravidão") e diversos outros.
Os efeitos secundários da medida não são de jogar fora, claro: os cinemas dão uma aura para o filme que ainda é inigualável, ajudando a criar sucessos e fenômenos sociais com potencial de alavancar, depois, a estratégia no streaming. Isso sem falar do possível êxito em premiações como o Oscar —e a estatueta de Melhor Filme conquistada em 2022, com "No Ritmo do Coração", foi uma boa surpresa que ajudou a impulsionar essa ideia.
Por isso, a Apple fechou parcerias com Sony, Paramount, Universal e Warner Bros., que passaram a cuidar da distribuição tradicional para uma nova leva de produções, com orçamentos enormes. Olhando em retrospecto, o passo foi maior que a perna.
"Assassinos da Lua das Flores", superprodução dirigida por Scorsese e com um custo estimado em cerca de US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão), segundo analistas, faturou apenas US$ 158 milhões (R$ 860 milhões) em bilheteria mundial, informa o Box Office Mojo —lembrando que boa parte desse valor fica com os exibidores. Nem na maior premiação da sétima arte mundial o longa se deu bem: mesmo com dez indicações ao Oscar, "Assassinos" saiu da festa sem estatuetas.
"Napoleão", cinebiografia com o personagem-título interpretado por Joaquin Phoenix, também custou US$ 200 milhões e se saiu um pouco melhor, com uma arrecadação global de US$ 223 milhões (R$ 1,2 bilhão). Ainda assim, insuficiente para se pagar.
Já "Agylle: O Superespião", uma comédia de ação com estrelas como Henry Cavill e Dua Lipa no elenco, foi um "flop" ainda maior. Com o mesmo gasto especulado em US$ 200 milhões, o título distribuído pela Universal faturou apenas US$ 96 milhões (R$ 522 milhões) em todo o mundo.
Por fim, "Como Vender a Lua" custou menos —US$ 100 milhões, ou R$ 544 milhões—, mas também vendeu menos, com uma bilheteria de US$ 42 milhões (R$ 228 milhões) para a dramédia romântica com Scarlett Johansson e Channing Tatum.
De fora, é difícil saber o impacto dessas produções no aumento nas assinaturas do Apple TV+. Como uma gigante trilionária que vende iPhones, a Apple pode se dar ao luxo de não ser tão transparente em relação às suas estratégias no streaming. Ou até mesmo perder milhões de dólares com uma artimanha que, na prática, não deu certo.
O boleto chegou
Seja como for, a mudança de rota revela que a Apple não quer continuar rasgando dinheiro com os cinemas. "Lobos" teve um custo menor e, embora não tenha gerado receita com bilheteria, a Apple evitou o pagamento de taxas ao estúdio pela distribuição tradicional. Há, ainda, os custos de marketing e distribuição nessa janela —o "P&A", de "print and advertising"—, que pode chegar (ou até mesmo superar) o valor total de produção. No caso, de US$ 85 milhões (R$ 462 milhões). Não está claro, entre esses lançamentos da empresa da maçã, quem é que paga por esse custo.
De qualquer forma, o saldo inicial parece positivo: a Apple informa que "Lobos" estreou como o filme mais assistido na história do TV+, elevando a audiência do serviço em quase 30%. No entanto, a empresa não divulgou detalhes sobre os números ou as métricas utilizadas.
É possível que o último suspiro da velha tática cinematográfica seja mesmo "F1", um longa-metragem criado a partir do sucesso renovado da Fórmula 1 em tempos de Netflix. Ao menos este será um "produto" da Apple que não sairá pela porta dos fundos, um destino muito melhor do que dos outros insucessos da companhia.
Enquanto isso, Wall Street parece indiferente: as ações da Apple na bolsa de Nova York estão em queda nesta semana, mas exclusivamente devido à relatos sobre uma fraca procura pelo iPhone 16.
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