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Filme que retrata 'podres' de Trump supera boicote para chegar ao Brasil

Estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (17) o filme "O Aprendiz", que relata a ascensão de Donald Trump muito antes do empresário do ramo imobiliário ser eleito o 45º presidente dos Estados Unidos. Contudo, a produção quase não chegou ao público devido a uma série de boicotes nos bastidores, motivados pela forma como o protagonista é representado —incluindo até uma polêmica cena de estupro.

Em desenvolvimento desde pelo menos 2018, "O Aprendiz" —título que faz um trocadilho com o reality show apresentado por Trump por anos— recebeu doações e investimentos de apoiadores e pessoas próximas ao ex-presidente, ansiosos para ver essa história na tela grande. Entre eles estava Dan Snyder, bilionário do ramo esportivo que foi considerado pela imprensa americana "um dos piores donos de time da história" por conta de sua passagem de quase 25 anos pelo Washington Commanders (ex-Redskins), da NFL, a principal liga de futebol americano.

Contudo, o projeto tomou uma outra direção da que eles imaginavam. Segundo a Variety, Snyder ficou furioso ao assistir a um corte inicial, desaprovando a forma como o protagonista é retratado. A produtora do bilionário, a Kinematics, alegou que a disputa não envolvia o proprietário, mas que havia, sim, "impasses criativos" entre eles e a equipe de produção.

Após não conseguir influenciar na versão final do longa-metragem —que tem outros financiadores, incluindo até o governo do Canadá—, Dan Snyder vendeu a sua parte para a produtora Rich Spirit, que já estava envolvida. Ainda assim, o problema não foi encerrado.

Donald Trump x 'O Aprendiz'

Em maio, em declaração à Variety, o comitê eleitoral do agora candidato à presidência chamou o longa de "lixo" e "pura ficção". "Vamos entrar com um processo", afirmou o porta-voz Steven Cheung. Poucos dias depois, os produtores de "O Aprendiz" informaram, em comunicado oficial, que receberam uma carta dos advogados de Trump exigindo que desistissem do lançamento, sob ameaça de irem à justiça. O pedido não foi atendido. "O filme é um retrato justo e equilibrado do ex-presidente. Queremos que todos assistam [e tirem suas próprias conclusões]", declararam.

Seja como for, a produção foi selecionada para a competição principal do Festival de Cannes, na França, que é o mais prestigiado do cinema mundial e conhecido por abraçar polêmicas. Mesmo elegível para as principais premiações, incluindo a Palma de Ouro, a obra encerrou o evento sem estatuetas, mas foi elogiada pela crítica e aplaudida por mais de dez minutos na première.

O diretor Ali Abbasi, o elenco e produtores do filme 'O Aprendiz' no tapete vermelho de Cannes, na França
O diretor Ali Abbasi, o elenco e produtores do filme 'O Aprendiz' no tapete vermelho de Cannes, na França Imagem: Divulgação/Festival de Cannes

Apesar dessa vitrine internacional, "O Aprendiz" —que é 100% independente, sem ligação com um estúdio— enfrentou dificuldades para garantir uma distribuição nos Estados Unidos. Em setembro, foi iniciada uma campanha de financiamento coletivo para subsidiar o lançamento. Foram arrecadados mais de US$ 400 mil (R$ 2,2 milhões).

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Mesmo com todos esses obstáculos, a estreia finalmente ocorreu em 11 de outubro, a menos de um mês das eleições presidenciais —nas quais Donald Trump concorre pelo Partido Republicano contra a democrata Kamala Harris. Exibido em 1.740 cinemas (menos da metade de "Coringa: Delírio a Dois"), o filme arrecadou quase US$ 2 milhões (R$ 11 milhões) no mercado norte-americano, de acordo com os números aferidos pelo Box Office Mojo até o fechamento deste texto. Com um orçamento de US$ 16 milhões (cerca de R$ 90 milhões), segundo o Washington Post, o longa deve gerar prejuízo durante sua exibição na telona.

Por aqui, a trajetória foi mais fácil: a Diamond Films garantiu os direitos de distribuição muito antes da seleção em Cannes. "O projeto chegou ao nosso conhecimento no início de 2023, e rapidamente firmamos o acordo. Foi um processo tranquilo, sem particularidades notáveis", conta Vinicius Pagin, diretor geral da distribuidora no Brasil.

Ele revela que houve, sim, risco de um adiamento da estreia no nosso território, caso ocorressem outras implicações legais na América do Norte.

Acompanhamos atentamente o que aconteceu nos EUA, pois o lançamento naquele mercado é fundamental para a estratégia internacional. Embora não tenhamos participado diretamente das negociações, fomos frequentemente atualizados sobre o progresso à medida que as decisões eram tomadas. Vinicius Pagin, diretor geral da Diamond Films Brasil

A preocupação ficou no passado. De acordo com o executivo, não há nenhum boicote no radar aqui no Brasil e as exibições nos Estados Unidos "ocorreram sem nenhum problema".

Afinal, sobre o que é "O Aprendiz"?

O longa-metragem se passa nas décadas de 1970 e 1980, tendo como pano de fundo a relação de Donald Trump (interpretado por Sebastian Stan, o Soldado Invernal da Marvel Studios) com Roy Cohn (Jeremy Strong, de "Succession"), controverso advogado que teve uma relação próxima ao poder e que teria ensinado muitas das táticas que o político emprega até hoje. Diferentemente de sátiras como "Vice", "O Aprendiz" é baseado em relatos autênticos, incluindo de entrevistas e documentos oficiais, ainda que incorpore uma dose de dramatização nos diálogos.

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A interpretação de Jeremy Strong como Roy Cohn (à direita, ao lado de Stan) é um dos destaques de 'O Aprendiz'
A interpretação de Jeremy Strong como Roy Cohn (à direita, ao lado de Stan) é um dos destaques de 'O Aprendiz' Imagem: Divulgação/Diamond Films

"O engraçado é que tudo que está no filme que parece mais chocante é realmente baseado em eventos reais. Muito pouco foi dramatizado. Essa é uma daquelas histórias mais estranhas que a ficção", disse o roteirista Gabriel Sherman, que também é jornalista, em entrevista para a Entertainment Weekly.

Um dos momentos mais controversos é a representação do estupro de Ivana Trump (Maria Bakalova) pelo então marido, em uma cena inspirada no depoimento que ela prestou sob juramento durante o processo de divórcio. Anos depois, Ivana afirmou que não usou o termo "estupro" no sentido literal ou criminal. Ela morreu em 2022, após sofrer uma queda em sua residência.

Em outras passagens, "O Aprendiz" também aborda o comportamento violento do protagonista, a relação conturbada com o pai e o irmão, sua impotência sexual, o uso de anfetaminas para perda de peso e procedimentos estéticos, como lipoaspiração e a remoção parcial do couro cabeludo para combater a calvície.

O diretor é Ali Abbasi, que conquistou ótimas críticas com produções como "Border" e "Holy Spider". Ele é nascido no Irã, país que foi motivo de pesadas sanções dos Estados Unidos durante o governo Trump.

Em Cannes, o cineasta defendeu a sua produção, afirmando que gostaria de apresentar o longa ao biografado. "Não acredito necessariamente que este seja um filme que ele não vá gostar. Eu acho que ele apreciaria, sabe?", afirmou. Donald Trump é um notório fã de "Crepúsculo dos Deuses", de 1950 —não se sabe se por uma possível identificação com a protagonista, a atriz Norma Desmond (Gloria Swanson), ou pelo clássico ser uma metáfora que trata da superficialidade, vaidades, ambições e o lado sombrio da Era de Ouro de Hollywood.

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Vinicius Pagin, responsável pela exibição de "O Aprendiz" no Brasil, corrobora com a opinião: "Há poucos pontos no filme que são realmente problemáticos para a base do ex-presidente, o que ajuda a mitigar possíveis reações extremas". Para o executivo Diamond, no final do dia, "a polêmica gera mais interesse pela obra".

Mesmo assim, o ex-presidente afirma que não gostou do que viu. Na rede social Truth, Trump afirmou que o longa é "falso" e "sem classe", além de comentar que o lançamento antes das eleições seria um "trabalho barato, difamatório e politicamente repugnante".

Independente dos objetivos comerciais, Abbasi deixou claro em Cannes qual é a sua maior motivação, isso logo após os longos aplausos da première: "Não há uma maneira metafórica agradável de lidar com a onda crescente do fascismo. Só há a maneira confusa, a maneira banal. Não vai ser bonito, mas penso que o problema com o mundo é que as pessoas boas ficaram quietas por muito tempo. [...] A tempestade não vai embora. Ela está vindo, na verdade. Você pode fingir que ela não está aqui, ou pode lidar com ela. [...] É hora de fazer os filmes serem políticos novamente".

Como vemos, o diretor acertou onde queria.

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