'Emilia Pérez' e 'O Brutalista' usam IA polêmica e colocam Oscar em xeque
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A temporada do Oscar 2025 está sendo uma das mais controversas da história. Enquanto os holofotes se voltam para as polêmicas envolvendo Karla Sofía Gascón e "Emilia Pérez", filme que lidera a disputa com 13 indicações, outro debate importante passa quase despercebido por grande parte do público brasileiro. Trata-se da utilização de inteligência artificial generativa em longas-metragens indicados na maior premiação do cinema mundial.
A ferramenta em questão é uma IA criada pela Respeecher, que pode recriar e modificar vozes. Tanto a obra francesa quanto "O Brutalista" —que acumula dez indicações e despontava como um favorito ao Oscar de melhor filme— recorreram ao recurso. O problema apontado é que nenhuma das duas produções mencionou oficialmente o seu uso. A revelação veio à tona de forma inesperada, em entrevistas despretensiosas de profissionais envolvidos.
Em seu site, a Respeecher explica que tudo começou em 2018, na Ucrânia, com "uma ideia simples": clonar a fala humana. A proposta era criar vozes sintéticas com machine learning (aprendizado de máquina, um dos ramos da inteligência artificial), fugindo do tom robótico típico de assistentes virtuais.
Em alguns anos, a companhia desenvolveu diversos produtos a partir disso. O primeiro uso reconhecido no entretenimento veio em 2020, quando foi lançado o episódio de "The Mandalorian" com a participação de Luke Skywalker, o protagonista do universo de "Star Wars" na tela grande. Como o ator Mark Hamill já contava com 68 anos enquanto o personagem ainda deveria estar na casa dos 20 e poucos, foi necessário usar computação gráfica para rejuvenescer o seu rosto —enquanto a companhia ucraniana ficou responsável por sintetizar o timbre original do guerreiro Jedi. Tudo, na época, devidamente creditado.
Nos anos seguintes, a tecnologia foi adotada em filmes, séries e muitos comerciais de TV. Hoje, a IA pode ser aplicada em escala industrial, estando acessível para qualquer um. Em sua página, a Respeecher vende assinaturas e pacotes de serviços a partir de US$ 1 (R$ 5,7) por minuto gerado. Entre as aplicações indicadas estão a recriação da identidade vocal de quem já faleceu, a dublagem, o ajuste para jovens atores em fase de mudança vocal e até o auxílio para que não-atores, como atletas em propagandas, soem mais naturais.
A IA "brutalista"
No caso de "O Brutalista", o editor do filme, Dávid Jancsó, fez a revelação do uso da IA em uma entrevista ao site RedSharkNews. De acordo com ele, que também está indicado ao Oscar pelo longa-metragem, foi uma necessidade imposta pelo sotaque dos atores norte-americanos nas cenas com diálogos na língua nativa dos personagens protagonistas —a história é sobre László Tóth, um arquiteto judeu da Hungria que sobreviveu ao Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial e emigrou para os Estados Unidos.
"Sou falante nativo de húngaro e sei que é uma das línguas mais difíceis de aprender a pronunciar. Mesmo com a origem húngara de Adrien [a mãe de Brody, intérprete do personagem principal, é uma refugiada que emigrou daquele país para os EUA em 1956], não é tão simples", contou Jancsó. "Nós treinamos [também a atriz coadjuvante, Felicity Jones] e eles fizeram um trabalho fabuloso, mas também queríamos aperfeiçoá-lo para que nem mesmo os locais notassem qualquer diferença."
É habitual a realização de ajustes nas vozes na pós-produção. A dublagem é aplicada por cima de áudios que não foram bem captados durante a filmagem, ou para trocar o texto das falas. Na indústria, isso é chamado de Automated Dialogue Replacement (ADR), ou substituição automatizada de diálogo, em português. Mesmo assim, isso não foi o suficiente para alcançar o nível de qualidade pretendido pelos cineastas. "Primeiro tentamos fazer ADR desses elementos mais difíceis com os atores. Depois tentamos fazer o ADR deles com outros intérpretes, mas isso não funcionou. Então, procuramos outras opções", revelou um sincero Jancsó.
Ao entrar em cena, a IA reduziu o tempo e os custos. "Você pode fazer isso no Pro Tools", afirmou fazendo referência a um programa muito usado para dublagem e mixagem de som. "Mas tínhamos muitos diálogos em húngaro e realmente precisávamos acelerar o processo, caso contrário ainda estaríamos na pós-produção". O orçamento de "O Brutalista" está estimado em US$ 9,6 milhões (R$ 55,3 milhões), um valor modesto para os padrões de Hollywood.

Os atores, afirma o editor, concordaram com o uso da ferramenta —e coube ao próprio Dávid Jancsó fazer o papel de modelo para alimentar a IA com a pronúncia correta do dialeto. "Em grande parte, o diálogo em húngaro deles tem uma fatia minha falando ali", compartilhou. O filme é predominantemente em inglês, no entanto.
A entrevista resultou em diversas críticas ao longa-metragem, já que, na visão de muitos, a inteligência artificial generativa teria ocupado o espaço da interpretação dos protagonistas, que também estão indicados ao Oscar.
"As interpretações de Adrien e Felicity são totalmente deles", disse o diretor, Brady Corbet, em uma nota enviada para The Hollywood Reporter. "Eles trabalharam por meses com a treinadora de dialetos Tanera Marshall para aperfeiçoar seus sotaques. A inovadora tecnologia Respeecher foi usada apenas na edição de diálogos em húngaro, especificamente para refinar certas vogais e letras para precisão. Nada na língua inglesa foi alterado. Este foi um procedimento manual, feito por nossa equipe de som e Respeecher na pós-produção."
O objetivo era preservar a autenticidade das performances de Adrien e Felicity em outro idioma, não substituí-las ou alterá-las, e feito com o máximo respeito pelo ofício.
Brady Corbet, diretor de "O Brutalista"
A IA em "Emilia Pérez"
Se usar inteligência artificial para corrigir um sotaque é algo controverso, o que dizer então de usar esse tipo de truque para cantar em um musical? Pois é exatamente isso o que ocorre em "Emilia Pérez".
Ainda em maio, no Festival de Cannes —onde o longa-metragem teve a sua estreia mundial—, o mixador Cyril Holtz revelou o uso do Respeecher durante entrevista para a Comissão Técnica de Imagem e Som francesa.
"Nossa expectativa era que todas as atrizes conseguissem cantar suas próprias partes. No caso de Zoe Saldaña, Adriana Paz e Selena Gomez, isso não foi um problema, mas para Karla Sofía foi mais complicado", explicou Holtz. "Alguns trechos de música eram extremamente difíceis, especialmente porque ela já havia passado pela transição [de gênero] e certos registros vocais não estavam mais acessíveis para ela."
A dificuldade veio porque o diretor, Jacques Audiard, queria uma protagonista com uma voz "quimérica", ou seja, com características dos dois gêneros. "Isso gerou uma questão muito cedo no processo: como resolver essa situação?".
Nossa esperança era que Karla Sofía pudesse interpretar todas as partes vocalmente, mas precisávamos de uma alternativa caso isso não fosse viável.
Cyril Holtz, mixador de "Emilia Pérez"
Em filmes e séries, é relativamente comum atores e atrizes terem suas vozes substituídas por cantores profissionais ou por gravações de arquivo na pós-produção. Rami Malek, por exemplo, ganhou o Oscar de melhor ator por "Bohemian Rhapsody" sem cantar uma nota. Toda vez que ele mexe os lábios em uma canção, quem ouvimos é o Freddie Mercury original.
Porém, este não era o caminho pretendido pelos realizadores de "Emilia Pérez". "Descartamos essa ideia porque queríamos preservar a continuidade do timbre da atriz ao longo do filme, sem que houvesse uma mudança perceptível para o público"

Para o longa francês, a Respeecher precisou avançar ainda mais a sua tecnologia. De acordo com o mixador, a IA generativa havia sido até então aplicada apenas em diálogos, e não em performances musicais. Apesar dessa diferença, o método foi muito parecido com o de "O Brutalista". Camille, cantora francesa que compôs as canções da obra, fez a captura da "voz fonte", servindo de modelo para a entonação. Tudo isso foi aplicado na vocalização de Karla Sofía Gascón, resultando naquilo que ouvimos na tela grande.
"As duas gravaram horas e horas de músicas, mesmo além do que seria necessário para sincronização com a imagem", afirmou Cyril Holtz. "Foi um trabalho minucioso entre a Respeecher e nossa equipe. Eles fizeram incontáveis versões diferentes dos áudios, e, no final, tivemos que sintetizar tudo."
Houve momentos em que pensávamos: 'Isso vai ser um desastre, nunca vai dar certo'. Mas, depois de todo esse esforço, conseguimos chegar ao resultado final, graças ao trabalho dedicado de muitas pessoas.
Cyril Holtz, de "Emilia Pérez"
Entre as 13 indicações de "Emilia Pérez" ao Oscar estão as categorias de melhor filme, melhor som e melhor música. Esta última é pelo rap rock "El Mal", que, dentro do longa, é interpretado por Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón. Camille é também creditada como uma das cantoras.
Em relação à premiação deste ano, fica difícil remediar os danos. Todavia, a revista Variety afirma que os organizadores da festa consideram exigir que, a partir de 2026, os concorrentes informem previamente o uso de IA.
Quem diria que, às vésperas de seu centenário, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas se veria diante do próprio dilema contido em seu nome: o equilíbrio entre arte e ciência?
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