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A guerra do streaming ganha outro campo de batalha no Brasil: o rádio

Por anos, a imprensa e a indústria do entretenimento analisaram a tão debatida guerra do streaming —e, no fim, a Netflix saiu vitoriosa. Mas essa foi apenas uma das batalhas. Outras frentes de disputa continuam abertas, inclusive fora do universo do vídeo. Uma delas envolve as tradicionais rádios brasileiras, que agora precisam se reinventar para enfrentar a concorrência das plataformas de áudio e outros concorrentes que nasceram na internet.

Contudo, essa é uma luta diferente. "A nossa guerra é sobre usabilidade, sobre a aderência da tecnologia", conta Marcelo Camargo, gestor de marketing da Mix FM, uma tradicional rede com foco no público jovem e que está presente em 700 cidades em 20 estados. "Mas não é uma guerra contra a plataforma em si e, sim, sobre a adoção. É uma guerra mais psicológica do que uma rivalidade direta por anunciantes ou audiência."

Lutamos para que as pessoas entendam que o rádio continua sendo muito relevante, muito presente no dia a dia delas --e que vale a pena escutar o que estamos fazendo.
Marcelo Camargo, gestor de Marketing da Mix

Para entender essa batalha, vamos dar dois passos para trás.

Entram a internet e o streaming de áudio

Há alguns anos, mesmo com o crescimento da internet e da pirataria, as rádios reinavam sozinhas na comunicação instantânea com o público. No segmento musical, eram o caminho para criar e consolidar novas estrelas, em conjunto com a televisão aberta. Até mesmo os celulares vinham com receptores de sinal FM. Isso mudou com o avanço do 4G e do 5G e, claro, do streaming. Foi necessário se reinventar para acompanhar essa mudança.

De acordo com números da Kantar Ibope, o online hoje corresponde a 54% do alcance das dez emissoras mais ouvidas do Brasil. Ou seja, a maioria não sintoniza mais no "dial" do radinho, mas, sim, acessa por meio de apps e sites.

"Tem uma conversa importante quando a gente fala desse tema, que é o áudio. Ele está passando por uma transformação gigante e tem crescido muito", compartilha Adriana Favaro, vice-presidente de Negócios da Kantar Ibope. "Hoje, de acordo com nossos estudos, 91% dos brasileiros consomem formatos de áudio no dia a dia, sejam pelo rádio, por podcasts ou por plataformas de streaming."

O áudio vem muito forte, e a gente tem visto isso até como um meio de comunicação básico, presente no WhatsApp, no Messenger, no Direct. Ele está se transformando e entrando na vida dos brasileiros de diversas formas.
Adriana Favaro, vice-presidente de Negócios da Kantar Ibope

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Contudo, apesar dessa maior competição, a executiva afirma que a mídia continua com a sua relevância dentro da vida das pessoas. O rádio alcança 79% da população, e os brasileiros que o consomem ouvem, em média, por 3 horas e 55 minutos ao dia, em diferentes momentos. "A mobilidade do rádio é um fator essencial. Ele acompanha o ouvinte no transporte público, na rua, durante a prática de esportes", diz Adriana.

Na Mix, Marcelo Camargo explica que, embora a transmissão tradicional ainda seja predominante, o digital ganha cada vez mais espaço —especialmente entre as novas gerações. "Eu tenho um filho de 8 anos. Ele não sabe o que é um aparelho de rádio, mas ouve rádio todo dia", compartilha o gestor.

Tanto é que, se você reparar bem, já houve uma transformação prática nas emissoras: uma parte delas deixou de trazer em seus logos o número da frequência, antes um dado importantíssimo a ser divulgado. "O nosso novo posicionamento é de plataforma de geração de conteúdo. Quando eu falo da marca Mix, ela pode ser consumida de qualquer lugar", esclarece Camargo. De acordo com a empresa, há, em média, 50 mil ouvintes diários pelo aplicativo e site, no período das 6h à meia-noite.

Locutora Gisa ao vivo na Mix: rádio é som ou imagem?
Locutora Gisa ao vivo na Mix: rádio é som ou imagem? Imagem: Reprodução YouTube/Mix

Essa tendência, inclusive, está deixando cada vez mais tênue a linha entre áudio e vídeo. Estações agora transmitem com imagem na internet —em um movimento que começou com uma câmera discreta no canto do estúdio, mas que hoje coloca o locutor no centro do enquadramento. Isso acontece nos mais diversos segmentos, do jovem ao de notícias, passando pelo popular e o adulto contemporâneo. Na visão de Marcelo Camargo, isso transformou os locutores em profissionais de comunicação que precisam trabalhar a própria imagem, inclusive nas redes sociais, e criar engajamento com os fãs.

Competição ampla

Se a internet traz novas formas de consumo, ela também traz novos competidores. Hoje, podemos ouvir podcasts (muitos no formato ao vivo) que são totalmente nativos da internet, como o Flow e o Podpah. E mesmo quem gosta de rádio pode ouvir estações de todo o mundo, como a californiana Kiis FM, sem qualquer barreira geográfica. Para quem quer ouvir apenas músicas, há o acesso a plataformas como Spotify e Deezer.

No entanto, Adriana Favaro, da Kantar Ibope, vê ainda muito espaço para as emissoras brasileiras. "O que diferencia muito é a conexão local e imediata com o ouvinte. A presença de locutores, informações ao vivo, programação que atende locais e atualidades são aspectos que as plataformas de streaming ainda não conseguem replicar."

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O rádio, tanto no formato tradicional quanto no digital, pode interagir com os ouvintes por meio de chamadas ao vivo, concursos e promoções, tornando o meio altamente engajante com o público. Essas são características que as plataformas ainda não conseguem oferecer e que são extremamente relevantes.
Adriana Favaro, da Kantar Ibope

Um trunfo é a curadoria. Nos streamings um algoritmo sugere as próximas músicas e monta playlists personalizadas. Contudo, cerca de 60% dos usuários do Spotify está no plano gratuito, que exibe anúncios, não permite a escolha de músicas específicas e limita o número de pulos por hora. Enquanto isso, nas emissoras tradicionais há programadores especializados, que escolhem as músicas com base na experiência e na interação com o público. "É uma equipe artística que estudou, se formou e que, diariamente, escuta e conversa com as pessoas que consomem a rádio. Eles fazem estudos, conversam com os artistas, têm um contato direto com eles. Ou seja, são pessoas estudadas."

A programação não é feita sem tecnologia. Temos plataformas onde analisamos o consumo, acompanhamos tendências. Se uma pessoa está ouvindo Shakira, possivelmente ela vai querer outro artista do mesmo estilo. A gente observa as tendências. As decisões são baseadas em tecnologia, sim, em informação. Mas, junto com a tecnologia, existem cabeças pensantes e estudiosas. E isso faz com que a experiência de ouvir o rádio seja melhor.
Marcelo Camargo, da Mix FM

Outro ponto é que as estações mantêm fortes estratégias que vêm sendo usadas há décadas na competição entre elas e que continuam relevantes na briga contra os concorrentes nativos digitais. Entre essas estratégias estão as tradicionais blitze, com promotores uniformizados circulando pelas ruas da cidade, além da promoção de shows e parcerias com iniciativas regionais.

Briga pela publicidade

A internet não só trouxe novos atores na luta pela atenção das pessoas: também aumentou a guerra pelo dinheiro das marcas. Além de disputar espaço nos orçamentos contra canais tradicionais, as verbas hoje são destinadas também para os streamings de música ou mesmo para plataformas como YouTube, Google Ads e redes sociais.

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As emissoras não abrem números, mas mesmo assim vem a pergunta incômoda: a mídia ainda funciona enquanto negócio? "O rádio é um veículo completamente experiente nas mudanças de rumo. Ele continua relevante", afirma Camargo, que destaca ainda dimensões continentais do Brasil e o alcance do sinal de radiodifusão. "O rádio construiu este país".

Rádios de notícias, como a BandNews FM, se assemelham cada vez mais com os telejornais na transmissão via YouTube
Rádios de notícias, como a BandNews FM, se assemelham cada vez mais com os telejornais na transmissão via YouTube Imagem: Reprodução YouTube/BandNews FM

Para os anunciantes, o que existe é uma educação sobre isso e em relação às transformações do meio. "Então, existe esse trabalho nosso aqui de conversar com as marcas e mostrar para elas como o áudio ainda é extremamente relevante para contar essa história que elas querem, colocando-as em contato com o consumidor", explica o executivo. Para o gestor, um diferencial da tradicional mídia é que existe um empenho no engajamento com o ouvinte, algo que não ocorreria tanto, na visão dele, dentro das redes sociais.

Adriana Favaro, da Kantar Ibope, complementa: "Um ponto extremamente importante nisso é a possibilidade de segmentação. É um meio que permite falar com todo mundo e com segmentações muito grandes, de entretenimento, de informação. Esse é um grande ganho para o mercado publicitário".

Do lado da medição de audiência, algo que também é importante para quem anuncia, há outros desafios. Antigamente, esse trabalho era feito por meio de pesquisas aplicadas nas ruas, por meio de questionários. Hoje, com a pulverização de canais, a Kantar Ibope agregou outros elementos à pesquisa.

"O entendimento de [o que é] rádio foi evoluindo", diz Adriana. "Hoje, por exemplo, tem uma participação também da pesquisa online, para atingir determinados públicos. Ao mesmo tempo, temos parceiros de tecnologia que imputam informações para conseguir essa cauda [longa] digital. É uma edição híbrida".

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Com tanta transformação —e guerra por atenção— acontecendo, como o centenário rádio ainda se mantém vivo? Talvez porque não seja só sobre tecnologia, mas sobre conexão. Ao longo do tempo, ele soube se reinventar, encontrar novos caminhos e provar que aquilo que mantém a comunicação viva não é a tecnologia, mas sim a conexão entre as pessoas.

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Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Após a publicação da reportagem, a Mix revisou os dados sobre sua audiência via streaming. A rádio agora informa que são 50 mil ouvintes diários pelo aplicativo e site, no período das 6h à meia-noite, e não 50 mil ouvintes simultâneos no aplicativo digital, entre 8h e 19h.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

5 comentários

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Fernando Souza

Muito legal. Há anos tenho um app de radios do mundo inteiro (só procurar aí por “radio” na loja do seu celular, vão aparecer alguns apps gratuitos) e peguei o hábito de escutar rádios de outros países. No começo era mais para treinar o inglês e o espanhol, e com o tempo acabou ficando bem legal, dá pra ter acesso a jornalismo de fora, músicas que são novidades em outros lugares etc. É muito bacana!

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Glaydson Cerqueira

Cara, rádio no BR virou canal de música sertaneja! Não dá pra ouvir. Pelo menos 80% da programação é Gustavo Lima e seus “parentes”. Com raríssimas exceções como Antena 1 de SP e Jovem PAN. Lamentável!

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Joao Antonio Guerreiro Lourenco Silva

Eu uso rádio ainda

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