A Bíblia, o versículo e a palavra da salvação: O que é ser um leitor?
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Para o poeta Lêdo Ivo, leitor é o "coautor do texto". Para o romancista Vladimir Nabokov, um livro não pode ser lido, apenas relido, por isso, "um bom leitor, um leitor importante, um leitor ativo e criativo é um releitor". Alberto Manguel, ensaísta e bibliófilo, acredita que "o leitor ideal é alguém com quem o autor não se importaria em passar uma noite bebendo uma taça de vinho". Manguel também crê: "a literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons" e o "leitor ideal não deveria ser confundido com um leitor virtual".
Alcanço o dicionário Houaiss. Nele, leitor é "quem lê para si mesmo, mentalmente, ou para alguém, em voz alta" ou "que(m) tem o hábito de ler" ou "(aparelho) que lê códigos, sinais, dados microfilmados etc". Já para a Retratos da Leitura no Brasil, pesquisa feita pelo Ibope sob encomenda do Instituto Pró-Livro e do Itaú Cultural, "leitor é aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses".
Nesta semana, apontei a mentira de Paulo Guedes sobre o perfil econômico do leitor brasileiro e indiquei alguns outros elementos interessantes do levantamento que acaba de ser divulgado. Mas há um ponto que precisa ser debatido: afinal, o que é um leitor? Se a leitura é importante, ler qualquer tipo de livro e de qualquer forma basta para que a pessoa seja de fato uma leitora? Ou deveríamos assumir que há diferentes níveis de leitores e trabalhar para que cada vez mais pessoas alcancem um patamar ideal? E o que seria esse ideal? Adianto, sigo com mais dúvidas do que respostas.
Ao apresentar os dados à imprensa, os próprios organizadores da Retratos da Leitura reconheceram que a métrica utilizada é bastante condescendente. Considerar leitor aquele que em três meses leu um mísero fragmento de algum livro ou gibi contribui para que possamos apontar que há 52 milhões de leitores no Brasil. Importante lembrar: em 2015, com a mesma referência, eramos 56 milhões. Em média, segundo os dados de 2019, o brasileiro lê 2,5 livros inteiros por ano e 2,4 parcialmente.
Esmiuçando os números da pesquisa, o que mais me preocupa é o destaque que a "Bíblia" e outros livros religiosos têm entre esses leitores. São os gêneros mais mencionados pelos brasileiros. Sim, "Bíblia" aparece como gênero e lidera o ranking em questão, com a preferência de 35% do público (tinha 42% na edição passada). É seguida pelos "religiosos", citados por 22% das pessoas, mesmo número de menções a contos e romances (entrevistados podiam dar mais de uma resposta). A "Bíblia" também lidera as tabelas de último livro lido e obra mais marcante.
Nada contra ler a "Bíblia", obra indissociável do cânone ocidental. Acontece que, como já apontei em outras ocasiões, na esmagadora maioria das vezes a leitura que se faz desse e de outros livros religiosos é dogmática, enviesada de acordo com o mediador da leitura - padre, bispo, pastor... Me parece o contrário da leitura que amplia os horizontes, faz refletir sobre realidades distintas, apresenta possibilidades de mundos e, como escreveu Antonio Candido, é decisiva para que nos tornemos mais humanos.
Quem lê apenas para procurar "a palavra da salvação, graças a deus" tem muito pouco a ver com aqueles leitores imaginados por Ivo, Manguel ou Nabokov. Pessoas que leem um versículo da "Bíblia" a cada três meses: isso basta para que tenhamos um país de leitores? É um cenário hipotético e exacerbado, claro, mas vale a provocação.
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