Arrogância ou desonestidade? Um engodo chamado "biografia definitiva"
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Machado de Assis é um bom exemplo. Nos últimos anos, tivemos descobertas e a solidificação de novos caminhos interpretativos a respeito do mestre e de sua obra. Uma foto emblemática encontrada numa revista argentina, o texto adulatório sobre D. Pedro II, a campanha para reafirmar sua negritude, novos olhares para como a questão racial está presente em seus escritos... Por mais que tenha morrido em 1908, a literatura de Machado segue viva e aberta a diferentes leituras, enquanto elementos até então inéditos ajudam a compor sua trajetória carnal.
Muitos trabalhos de cunho biográfico buscaram retratar a complexidade do escritor. "Machado de Assis", de Modesto Abreu, é de 1939. "Vida e Obra de Machado de Assis", de Raymundo Magalhães Junior, saiu em 1981. "Machado de Assis - Um Gênio Brasileiro", de Daniel Piza, é mais recente, chegou aos leitores em 2005. São livros de diferentes períodos que carregam, intrinsecamente, o olhar de seu tempo sobre a obra de Machado. Como não poderia deixar de ser, em cada texto as informações se limitam ao que era até então conhecido. Daí que todos podem ser trabalhos respeitáveis, mas nenhum poderia reivindicar o rótulo de biografia definitiva sobre Machado de Assis.
Machado e os livros citados são meros exemplos - nem sei se algum dos autores mencionados veio com o papo de que fazia um trabalho que encerraria a conversa a respeito do Bruxo do Cosme Velho. No entanto, modismos vêm e vão também no mercado editorial, e o jargão "biografia definitiva", que me parecia um tanto esquecido, está de volta. O material de divulgação de dois livros recém-aportados em nossas livrarias promete a biografia definitiva de diferentes personalidades: "Churchill - Caminhando com o Destino", de Andrew Roberts, que seria a "biografia definitiva" do político britânico (Companhia das Letras), e "Janis Joplin - Sua Vida, Sua Música: a Biografia Definitiva da Mulher Mais Influente da História do Rock", de Holly George-Warren (Seoman), que joga o engodo pro subtítulo do livro.
Colocar o rótulo de "definitivo" numa biografia é mistura de arrogância com desonestidade intelectual, e não há argumentação marqueteira que me convença do contrário. Como disse, as biografias são limitadas pelo próprio conhecimento de mundo (e a respeito do biografado) da época em que são escritas e lançadas. Mas não só. Gosto da definição do colega Sergio Vilas-Boas, especialista no assunto: biografia é a história do biografado segundo o seu biógrafo. Ou seja, é a versão daquela vida que o autor da biografia escolheu contar. Tendo exatamente os mesmos dados em mãos, um escritor pode contar a história por uma perspectiva, enquanto outro pode escolher um caminho totalmente diverso. Ambas serão válidas, nenhuma será definitiva.
Uma vida e uma obra jamais se esgotam num livro. Descobertas, visões de mundo, reinterpretações históricas, enfoques diferentes, tudo isso contribui para que a mesma trajetória possa ser contada e analisada de diversas formas por diversos autores. Essa pluralidade faz bem ao leitor que, com olhar crítico, pode cruzar informações de fontes diferentes para chegar à própria visão da personalidade cuja vida quer mesmo conhecer.
Sempre que autores e editoras te oferecerem uma "biografia definitiva" sobre alguém, desconfie. Prometem algo impossível de entregar.
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