Cartas de C. Lispector: "doce" Lygia Fagundes Telles e humilhação na Suíça
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"Lygia, você é tão doce e escreve tão bem. Fiquei muito contente com o fato de Rachel de Queiroz entrar na A.B.L. Se eu tivesse poder, daria a segunda vaga a Dinah Silveira de Queiroz que conseguiu para a mulher brasileira um lugar ao sol. Embora eu não deseje a morte de ninguém, sugiro que a terceira vaga seja preenchida por Lygia Fagundes Telles. Estão achando que sugiro mulheres demais? Não, é que a Academia Brasileira de Letras tem uma grande dívida com as mulheres. E se Nélida Piñon estivesse na Academia, esta sofreria modificação revolucionária, pois Nélida tem coragem para renovar. Antes de terminar, quero dizer que, apesar do grande respeito que tenho pela Academia, eu jamais aceitaria entrar nela".
Clarice Lispector escreveu esse bilhete à amiga Lygia Fagundes Telles em novembro de 1977. Nele, após comemorar a eleição de Rachel de Queiroz, primeira mulher a ingressar na ABL, antecipa o nome de outras colegas que ganhariam cadeira e fardão na Academia: Dinah, Lygia e Nélida também se tornaram imortais. A mensagem encerra o livro "Todas as Cartas", volume reunindo correspondências escritas por Clarice que acaba de ser lançado pela Rocco em mais uma ação para marcar o centenário de nascimento da autora, a ser comemorado no dia 10 de dezembro.
Nas mais de 860 páginas do tijolo, encontramos quase 300 mensagens escritas por Clarice entre as décadas de 1940 e 1970 - cerca de 50 delas eram conhecidas apenas por pessoas próximas à escritora ou pesquisadores. Diferente do que o título leva a crer, nem todas as cartas ou bilhetes que a autora escreveu nesse período entraram na obra. Resultado de uma longa pesquisa realizada pela jornalista Larissa Vaz, a edição privilegia missivas que ajudam a compreender os interesses literários ou a própria vida de Clarice.
Encontramos, por exemplo, a escritora em formação pedindo a opinião de Mario de Andrade, já consagrado autor de "Macunaíma", sobre o "Perto do Coração Selvagem", seu romance de estreia, publicado em 1943. No bilhete escrito em 27 de junho de 1944, lemos:
"Acostumei-me de tal forma a contar com o senhor que, embora temendo perturbá-los e não lhe despertar o menor interesse, escrevo-lhe esta carta. O fato do senhor não ter criticado meu livro serve evidentemente de resposta, e eu a compreendo. No entanto, gostaria de bem mais do que o silêncio, mesmo que para sair deste sejam necessárias certas palavras duras. Peço-lhe que interprete minha carta como quiser mas não veja nela falsa humildade".
Parte considerável de "Todas as Cartas" é feita de mensagens que Clarice escreveu a partir do exterior, durante as quase duas décadas que viveu longe do Brasil. Para Rubem Braga, cronista dos maiores que já tivemos, que a autora de "O Lustre" se queixou sobre aspectos da vida que levava em Berna, capital da Suíça, no final de 1948:
"Os Valentes estão às voltas com o bebê. Expulsei a criatura que tinha vindo me ajudar - e francamente nunca vi tanta fralda na minha vida. A suíça que expulsei espalhou pela vizinhança que éramos uns selvagens, que cometíamos o grande pecado suíço: a desordem. Ficamos muito humilhados. Além do mais ela só queria ouvir Bach e Mozart e só queria ler Rilke e Herman Hesse. Tanta cultura acabou por dar nos nervos".
Há mais, claro: cartas a João Cabral de Melo Neto, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Murilo Rubião... E se talvez o principal charme do livro esteja nas correspondências que Clarice enviou a outros grandes escritores e intelectuais, resgato aqui uma ótima história que nada tem a ver com o livro, mas diz muito sobre a amizade entre Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Numa entrevista ao Roda Viva, Lygia lembrou de quando ela e Clarice escaparam de um congresso para tomar umas biritas. Vale assistir:
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