'Damas da Lua' e a arte como meio para sairmos desta distopia
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No começo do ano passado, numa conversa sobre distopias com os escritores Ignácio de Loyola Brandão e Felipe Castilho, ouvi deste uma frase que ainda ecoa em minha cabeça: "a distopia de uns é a utopia de outros".
Quem deseja um mundo mais democrático, justo, com igualdade de oportunidades e respeito aos direitos humanos está vivendo um momento distópico. Independente do resultado, nos Estados Unidos os eleitores demonstraram um apoio gigantesco a Donald Trump, antítese de tudo que acabo de citar - e os sons de lá, sabemos, ecoam por parte do planeta. O que nos trouxe ao atual cenário foi a quantidade de gente que se identificou com ideias toscas, violentas, segregacionistas, anticientíficas... Uma utopia torpe, que violenta, massacra e mata, ainda faz sentido para centenas de milhões de pessoas. Repito o Felipe: nossa distopia é utopia para outros tantos.
"A impressão que temos é que boa parte da esquerda perdeu a imaginação, ou tem preferido abdicar dela em nome de um realismo que apenas abate, paralisa, entrega multidões antes joviais ao desalento. Qualquer sujeito ainda tocado pela utopia tende a ser visto como um lunático, delirante, perdido", escreveu o colega Julián Fuks em sua coluna aqui no Uol. No texto, ele discorre sobre a necessidade de poetizar a política, que extrapola as disputas partidárias e permeia aspectos diversos da existência.
Primeiro romance árabe a vencer o pomposo International Booker Prize (levou em 2019), "Damas da Lua", de Jokha Alharthi, saiu há poucas semanas no Brasil pela Moinhos, em tradução feita a partir de sua língua original por Safa Jubran. Consta que é também o primeiro romance do Omã, país que forma o bico da Península Arábica, a ser vertido para o português. É sempre ótimo termos acesso a novas leituras do mundo. E acalme-se, não desisti de um texto para escrever outro.
Construído com dezenas de personagens com certa relevância, o livro de Jokha explora os conflitos, as contradições e as rupturas de uma sociedade baseada em hábitos e valores tradicionais (e frequentemente arcaicos) que começa a se abrir para outras possibilidades de vida. Um povo que passa a lidar com tendências progressistas e a tropeçar em certos entulhos vindos de culturas como a norte-americana e a europeia.
Nas idas e vindas temporais do romance, encontramos subserviência e também a luta por autonomia. Mulheres massacradas pela truculência dos maridos arranjados e outras que recusam um futuro teoricamente já traçado. Esposas que sobrevivem amarradas à cama onde são violentadas e garotas que passam os dias idealizando um noivo. Senhoras que suprimem o desprezo e o ódio pelos seus digníssimos e moças que planejam cursar a universidade.
Dentre os diversos núcleos que têm suas histórias esboçadas pelos fragmentos, destaca-se o de Maya, mulher arretada que não imita ninguém, gargalha do amor e não sorriu nem no dia do próprio casamento. Ela vive ao lado de Abdallah Ibn-Sulaymán, homem de olhar poético que rende à narrativa flertes com uma linguagem surrada (avião que penetra as "densas nuvens", por exemplo), mas que não chegam a abalar o trabalho de Jokha. Dentre os filhos do casal, London, a criança com "nome de lugar, em país cristão", desde o início representa o aceno para além da Península Arábica, ao império que outrora se intrometeu no Omã.
Falei da narrativa fragmentada e do flanar pelo tempo, por décadas da história do país. São opções de Jokha que provavelmente causarão certa confusão nos leitores. A ideia da autora era mesmo essa, creio. Emular, por meio desses recursos, a dificuldade de assimilar tudo o que decorre do choque ou do diálogo entre costumes tradicionais e novos hábitos. O conselho é: sigam adiante; sentir-se perdidos faz parte tanto da experiência de leitura quanto do fenômeno que a autora constrói.
Passear por histórias, lendas, ditados e visões dos árabes sem esteriótipos e toscas buscas pelo excêntrico já justifica a leitura de "Damas da Lua". Não desprezar as raízes, mas caminhar para frente. Libertar-se de costumes, mas não se perder em deslumbramentos fúteis. Ter um lugar no qual as mulheres estejam no controle da própria vida - ideia que ainda soa revolucionária ou utópica em diversos cantos. Eis elementos que se destacam na obra de Jokha.
"A imaginação, Assmá, é como a arte, dá valor a minha existência, e, por mais que a realidade seja bonita, sem imaginação, a vida simplesmente se torna insuportável. Você vê o movimento aparente das pessoas enquanto passam pela vida? É apenas a parte visível e flutuante do iceberg. A parte imersa, a parte maior é seu movimento interno, seus mundos particulares e sua imaginação", diz o pintor Khálid já no final da narrativa.
A arte tem o poder de mexer com a parte oculta desse iceberg, e Jokha Alharthi sabe muito bem disso. Em entrevista à jornalista Clara Balbi, da Folha, a escritora apontou a literatura como um caminho para se criar e recriar mundos, numa fala que me parece ser a chave para interpretarmos seu trabalho: "A literatura cria uma nova realidade, paralela à primeira. Considerar isso um espelho não só anula seu papel ficcional e estético, mas trata a escrita como simples reprodução da realidade e não como o agente que a reconstrói".
A ficção está aí como um meio alicerçar novas realidades. Não dá para mudar nosso atual buraco apenas apontando as truculências, contradições e as mentiras da utopia distópica em vigor. Isso vem se mostrando fraco, sem apelo, com pouca ressonância. Apostar meramente no racional não faz sucesso há algum tempo - ou talvez nunca tenha feito. Com tantas rupturas, novas formas de mundo precisam perambular pelo imaginário das pessoas. A arte pode ter um papel importante nesse urgente processo.
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