Livros como reflexo do que somos e a biblioteca falsa de Carlos Bolsonaro
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Cerca de um século atrás, no começo da quarentena, as bibliotecas reveladas nas lives mexeram com a cabeça do povo. "Qual livro é aquele ali do canto?" "Reconheço essa lombada". "Olha, Mario Magalhães, ele também tem o 'Marighella'". "Será que já leu mesmo tudo isso?". Frases do tipo eram frequentes entre leitores curiosos. Por outro lado, os que odeiam qualquer traço de racionalidade e os que querem surfar na onda dos brucutus aproveitaram para tripudiar. Veem a biblioteca como símbolo de ostentação intelectual, que indicaria quão distante o dono está do "mundo real". Bobagem.
Nesse tempo, o governo também comprovou que não se entende com os livros. Paulo Guedes, ministro da Economia e grande exemplo dessa falta de entrosamento, primeiro mostrou ao mundo sua estante deserta de ideias. Depois, inventou que livro é coisa de rico para tentar empurrar mais impostos para o produto. Guedes simplesmente mentiu, importante dizer. Agora, mais um episódio envolvendo bolsonaristas e sua "bibliotecas".
Num vídeo de sua campanha para vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro fala sobre covid-19, narrativas e supostas verdades que precisariam ser reestabelecidas. O tom do breve discurso de um dos filhos do presidente da República é sério. O cenário, pouco usual nas campanhas de seu clã: justamente uma biblioteca. Só que uma biblioteca mais falsa do que nota de R$89 mil. Por si só, nada fora da curva: em diversas propagandas o político utiliza ambientes simulados, algo corriqueiro nas redes sociais.
Mas é no mínimo curioso que um candidato a vereador use uma biblioteca falsa para falar sobre a construção de narrativas e a necessidade de se estabelecer a "verdade". Considerando que num vídeo de campanha nada é aleatório, há alguns caminhos possíveis por trás da escolha de Carlos. O primeiro é demonstrar quão zombeteiro ele pode ser. O segundo dialoga com o primeiro: com deboche e uma estética bizarra, como de praxe, fazer barulho nas redes - o que conseguiu, é inegável. Já o terceiro traz esperança.
A pandemia, pelo menos num primeiro momento, golpeou governos autoritários e criaturas que tentam crescer espalhando a própria sombra pelo mundo. Aparentemente, já não é mais tão fácil menosprezar a ciência, negar a verdade e criar narrativas amalucadas como vinha sendo nos últimos anos. Seres que agem como se a intelectualidade tivesse que ser jogada no lixo começam a encontrar uma resistência maior do que outrora. Manifestações e reviravoltas políticas pelo planeta reforçam os novos ares. No Brasil a coisa está devagar, mas talvez novas brisas estejam chegando por aqui. Daí um Bolsonaro a posar com uma estante de livros (de mentira) às costas.
Apostar em bibliotecas falsas ou vazias e encarar livros como objetos de elite, no entanto, revelam muito sobre Carlos, Guedes e pessoas afins. Resgato aqui um fragmento de "Identidade", um dos capítulos de "A Biblioteca à Noite" (Companhia das Letras, tradução de Samuel Titan Jr.), delicioso ensaio escrito pelo argentino Alberto Manguel. Mais do que editor ou escritor, Manguel é um enorme apaixonado pelos livros. Com propriedade que aponta:
"Podemos imaginar os livros que gostaríamos de ler, mesmo que ainda não tenham sido escritos, e podemos imaginar bibliotecas cheias de livros que gostaríamos de possuir, mesmo que estejam muito além de nosso alcance, porque gostamos de sonhar com uma biblioteca que reflita cada um de nossos interesses e cada uma de nossas fraquezas — uma biblioteca que, em sua variedade e complexidade, reflita integralmente o leitor que somos. Assim, não é absurdo supor que, de modo semelhante, a identidade de uma sociedade ou de uma nação possa ser espelhada por uma biblioteca, por uma reunião de títulos que, em termos práticos ou simbólicos, faça as vezes de definição coletiva".
Sonhos, interesses, fraquezas, variedade, complexidade. O leitor que somos. Tudo isso construído e evidenciado por meio dos livros. Mas livros reais, daqueles que felizmente aparecem nas lives de muita gente. Triste a sociedade ou a nação que tem a sua identidade espelhada por uma biblioteca falsa ou vazia. Em muitos países, bibliotecas verdadeiras e plurais que voltam a fazer sucesso.
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