O racismo, a polícia que mata e a genealogia da pedra contra a vidraça
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"Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política de Estado. Uma política que persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos".
É o que um jovem negro, ex-aluno, diz no enterro do professor Henrique Nunes, massacrado a tiros por policiais numa rua de Porto Alegre. Ao sofrer a criminosa abordagem, o mestre caminhava para a escola. Ele estava empolgado. Finalmente tinha fisgado a turma para as aulas sobre Dostoiévski.
A possível vida de Henrique está no centro de "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, romance que saiu há poucos meses pela Companhia das Letras. Nele, Pedro, um universitário no começo da vida adulta, busca recriar a história de seus pais. Sem muitos elementos em mãos, organiza uma narrativa que seja coerente para si. "Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Eu sei que essa história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva".
Mencionei na sexta: o livro de Tenório é mais uma das relevantes obras da literatura brasileira recente a encarar o racismo impregnado em nossa sociedade. Apesar de a narrativa explicitar como a cor da pele pode definir os rumos da vida de um negro na capital gaúcha (mesma cidade onde João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi assassinado por seguranças do Carrefour na última quinta), vemos histórias parecidas e problemas semelhantes se repetirem por todos os cantos do país.
Tenório entrega ao leitor um romance cheio de nuances. A descoberta e a compreensão do racismo, a forma como a estrutura racista influencia toda uma vida, as diferentes maneiras de como o racismo atinge negros e negras, a necessidade de bolar estratégias para driblar e sobreviver a diversas formas de violência do cotidiano, a hora em que a tragédia construída ao longo de anos deixa de ser algo distante para se tornar um drama particular...
Os personagens de Tenório são complexos. Reduzidos por parte considerável e influente da sociedade a ameaças permanentes, reivindicam os direitos mais básicos. Querem compreensão para suas fraquezas e incertezas, para suas subjetividades. Eventuais deslizes não podem terminar com um corpo fatalmente baleado - ou com seguranças matando com as mãos mesmo. Há que se revoltar quando um grupo de pessoas vive com medo de falar alto em certos lugares ou de fazer movimentos bruscos com a polícia por perto. Um racismo estrutural que acaba por abalar o íntimo de suas vítimas:
"Quando você falha, quando você cai, você precisa abrir mão da autopiedade, mesmo que seja a única bengala, mesmo que haja um mundo nefasto ao seu redor, é preciso ser honesto com seus afetos. Mas isso dói. E às vezes não se quer ter essa coragem. E ainda assim, por mais que você seja sincero consigo, por mais que você derrube as ilusões, sobrará sempre aquela dúvida sobre suas reais capacidade. E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos".
Resenhar um livro é escolher enfoques. Poderia abordar "O Avesso da Pele" por meio do conjunto de violências domésticas encontrado na obra ou pelos problemas de educação apresentados na narrativa, que em alguns poucos momentos peca pelo didatismo. Entretanto, olhando para as notícias e para as esquinas, seria covarde desviar do aspecto principal do romance.
Em certo momento, ao reconstruir os episódios de racismo vivenciados pelo pai, Pedro traça uma espécie de árvore genealógica do assassinato, cometido por policiais também assombrados pela asquerosa estrutura. A série de episódios lamentáveis ainda pode ser vista como a genealogia das pedras contra vidraças (ou do fogo em prateleiras). É ali que você enxerga o verdadeiro vandalismo.
Numa realidade em que forças de segurança espancam, torturam, humilham e matam, matam, matam. Em que uma parte gigantesca da sociedade vive acossada, amedrontada, vigiada, tida como ameaça constante. Em que Bolsonaro e Mourão vomitam o próprio racismo ao negá-lo. Em que tantos vivem à margem do que prega a Constituição, chega a ser curioso que quem lute para romper com esse cenário seja apontado como extremista, enquanto pessoas de fala mansa que buscam deixar tudo mais ou menos como está sejam pintados como os razoáveis.
Henrique, o pai de Pedro, o homem assassinado pela polícia no livro de Tenório, deixou sua marca. "A sua grande obra foi continuar levantando, dia após dia. Apesar de tudo, você continuou desafiando a possibilidade de morrer. No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco", lemos já no final da narrativa. Conecto a passagem com um trecho do começo da obra: "Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas".
Anda difícil acreditar apenas nos livros.
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