Clarice no estádio: o futebol me lembrou uma luta entre a vida e a morte
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Passeio por "Todas as Crônicas", lançado pela Rocco em 2018, e me surpreendo ao encontrar um texto de Clarice Lispector sobre o futebol. Publicado em 30 de março de 1968, nele a autora responde a um apelo de Armando Nogueira. Numa coluna, o colega de Jornal do Brasil havia escrito que trocaria a vitória do seu Botafogo por uma crônica da escritora sobre o esporte.
Clarice, cujo centenário de nascimento comemoraremos no próximo dia 10, elogia o jornalista e se diz sua leitora. "Armando escreve tão bonito (não digo apenas 'bem'), que às vezes, atrapalhada com a parte técnica de sua crônica, leio só pelo bonito", registra, já indicando sua pouca familiaridade com o que se passa dentro das quatro linhas. Mas nem por isso a autora de "A Hora da Estrela" recusa o desafio ou menospreza o futebol.
Conta que também torce para o Botafogo e dá seu quinhão para a construção da fama de sofredor que povo da Estrela Solitária carrega com certo orgulho. "Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo".
Depois, após lembrar de que tem um filho botafoguense e outro flamenguista, se diz uma "ignorante apaixonada" pelo esporte que poderia um dia vir a entender. Mais adiante ela acena para essa possibilidade: "Quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que representa vida. Mas sinto que não desisti".
A escritora prossegue dizendo que um dia, quem sabe lá pelo final da vida, entenderá mais de futebol: "Ou você acha que não vale a pena ser uma velhinha dessas modernas que tantas vezes, por puro preconceito imperdoável nosso, chega à beira do ridículo por se interessar pelo que já devia ser um passado? É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha do futuro".
Em certo momento da crônica, Clarice conta que só esteve uma vez num estádio. "Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma brasileira errada". Foi o suficiente, no entanto, para que enxergasse a beleza ocasionalmente bruta do futebol e tecesse o trecho que considero mais bonito de "Armando Nogueira, Futebol e Eu, Coitada":
"Não, não imagina que vou dizer que futebol é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de gladiadores. E eu - provavelmente coitada de novo - tinha a impressão de que a luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta porque um juiz vigiava, não deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria, se jogasse (!). Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol, jamais me ocorreria jogar… Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações"
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