2021: A poesia de Eugênio Gianetti e a longa noite em que estamos metidos
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"Amanheceu outra vez/ a luz do dia espreguiça e boceja/ em breve vozes incrédulas se juntarão a vozes brandas/ que se juntarão a vozes inumanas;/ minha sombra será outra vez/ pisoteada nas calçadas"
A empolgação com o novo ano arrefeceu bem rápido desta vez. 2021 mostra uma cara parecida com a do pavoroso 2020. Se alguém duvida, basta dar uma rápida olhada nas notícias que realmente importam. Já são oito dias de desespero. O ano novo amanheceu, mas seguimos perdidos na longa e persistente noite.
A imagem do amanhecer que nos desperta para uma contínua escuridão se forma em minha cabeça ao ler os poemas de Eugênio Ramos Gianetti. Em 2018, o autor lançou "Zoobreviver" e agora prepara pela mesma editora, a Patuá, um novo volume reunindo seus versos. A promessa é que "Atoleiro (Tempos de Rua)" chegue aos leitores nos próximos meses.
"Porque no entanto é preciso fingir", leio numa das peças em fase de edição. Impossível não lembrar de como nos enganamos com a virada de ano, como se uma simples mudança no calendário fosse capaz de trazer soluções para nossos problemas. Ainda enfurnado dentro de casa e um tanto perdido nos dias da semana desde que a rotina foi pulverizada, também me encontro em outro fragmento de Gianetti: "Chega um momento em que tanto faz se é dia ou noite, segunda ou sábado. Não faz diferença".
Ao pensar no futuro, um trecho de um poema do primeiro livro do autor cai bem: "O acaso e apenas o acaso/ justifica minha existência./ não espero mais nada./ que virão dias piores?/ hum, hum?/ existir não é o mesmo que viver/ minhas opiniões são rudimentares".
Em "Atoleiro (Tempos de Rua)", o poeta versa sobre jaulas e janelas que guardam animais, delineia a história do fracasso, explora aquilo que é oco por fora e também por dentro. Se antes o poeta pedia uma flor vira-lata ("uma flor./ acho que preciso encontrar/ alguma flor vira-lata/ para ter com quem falar à noite"), agora as figuras são outras: o pelicano velho em meio à maresia de urina, escarros e vômitos, a legião de baratas que protegem contra sonhos ruins. O cachorro, a desejável companhia, segue apenas no imaginário.
A poesia de Gianetti carrega muito do desânimo, da descrença, da solidão e da falta de perspectiva de nossos dias. As quedas, a ruína, as memórias mais difíceis, as mentiras, os naufrágios de uma vida, a família que nem em fotografia existe mais, o tempo que nada cura... Tudo isso serve de material ao artista. Mas há também momentos de beleza, alívios no meio do pandemônio no qual estamos metidos, sorrisos raros. Há a borboleta que, dentre tantas outras, escolhe justamente a cama do poeta para pousar.
Na própria relação com a poesia ou nos detalhes da natureza que encontramos algum afago, esperança ou a ocasional e necessária ilusão. A atenção de Gianetti com a sonoridade das palavras fica evidente em casos como este: "sarcoma rubicundo/ o sol dolorindo o mundo/ furibundo sarcoma/ o deserto como axioma". Sempre breves, seus poemas também podem ser pontuados pelo humor e pelo sarcasmo, acenam a referências como Dolores Duran (aquela que "fecha as asas e voa para longe") e entregam aos leitores bons achados ("sair e conseguir voltar para casa ileso./ (em casos extremos apelar para a invisibilidade)".
Gianetti tem 68 anos e vive há duas décadas entre albergues públicos e as ruas de São Paulo. Escrevendo em cadernos ou papéis amarrotados (diversas vezes roubados junto com sua mochila), chamou a atenção de uma bibliotecária do Sesc do Carmo, que em 2017 apresentou a literatura do poeta à editora Patuá. A história está contada em detalhes num perfil escrito por Mauricio Duarte que o Splash acaba de publicar.
"Roubaram outra vez/ outros tantos poemas meus/ não importa, faz parte./ vou semeando devagar/ entre a bandidagem/ a imundície/ o epicentro/ não na superfície/ mas dentro", versa Gianetti num momento de "Zoobreviver". "Mistura de aromas/ almíscar, sândalo, jasmim/ mijo, bosta, gás carbônico/ minha querida cidade/ puta velha e solitária", escreve em outro.
É dura a poesia de Eugênio Ramos Gianetti. Como a noite que se arrasta.
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