Fantasmas de uma ditadura: o horror que prossegue e o futuro que não chega
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D casou com sua esposa no dia 13 de novembro de 1974, pouco mais de um ano após o golpe que provocou a morte de Salvador Allende e colocou o Chile sob o coturno dos militares. Algum tempo depois, o casal teria M, a jovem que narra "Kramp", romance da chilena María José Ferrada que saiu no final do ano passado aqui no Brasil pela Moinhos (tradução de Silvia Massimini Felix). São raros os nomes que aparecem na história. Com um quê kafkiano, boa parte dos personagens são identificados apenas por alguma letra.
Dentre os centrais, um dos nomes identificados é justamente Kramp, marca de produtos comercializados em lojas de ferragens e materiais para construção. Caixeiro-viajante, D revende esses produtos por vilarejos chilenos (ou "malditos povoados de merda"), lugares um tanto isolados, onde os acontecimentos urgentes do país parecem chegar como ecos enfraquecidos. Nesses cantos, pessoas acreditam que é mesmo melhor tocar a vida sem falar de política.
Por volta dos sete anos, M passa a acompanhar o pai pelas andanças de pequena cidade em pequena cidade, de loja em loja. Ela nos faz acreditar que se torna uma promissora revendedora de produtos Kramp. Estes, por sua vez, transformam-se em referências para a compreensão de mundo da menina. As artimanhas para tirar vantagens e se sair bem nos negócios serão decisivas na formação de M, que prematuramente percebe o mundo como um "teatro ridículo".
Em seus deslocamentos, vez ou outra D e M ganham a companhia de E, fotógrafo que perambula por cidadelas em busca de fantasmas. Esses fantasmas, logo notamos, ainda que não da forma explícita como apresento aqui, são os chilenos assassinados pelos militares capachos do ditador Augusto Pinochet. É o contraste entre o trabalho do fotógrafo e o da dupla de vendedores que faz o leitor refletir sobre a normalidade como muitos tocam a vida enquanto outros tantos estão sendo massacrados pelo próprio Estado, numa condição em que a violência se desvela sem que parte importante da população assimile ou se importe com os fatos. Na ditadura chilena, foram mais de 3 mil os mortos e desaparecidos, além de algumas dezenas de milhares de torturados e exilados.
"Vamos ver se no inferno você vai ter vontade de continuar procurando ossos, cachorro de merda", lemos em certo momento de "Kramp". A estupidez, bastante familiar aos brasileiros, sai da boca de uma autoridade chilena. Graças ao importante e perigoso trabalho do fotógrafo que entendemos um pouco melhor o mundo no qual vive a mãe de M, mulher mais próxima de suas questões do que da própria família. Envolvida na busca dos desaparecidos políticos, distancia-se do marido e da filha, numa relação de turbulência ou de fragilidade familiar causada pela ditadura (e pela resistência à ditadura) similar ao que encontramos no romance "La Casa de Los Conejos", da argentina Laura Alcoba (Edhasa), ou no conto "A Necessidade de Ser Filho", da também chilena Andrea Jeftanovic, presente no livro "Não Aceite Caramelos de Estranhos" (Mundaréu).
"Kramp" é um romance muito mais denso do que aparenta. Narrado e protagonizado por uma personagem cativante e ciente das limitações ou extrapolações de suas memórias, envolve o leitor com uma garotinha que vai descobrindo como o mundo funciona em condições e situações inusitadas. Além desse universo apreendido pelo olhar arguto de M, aos poucos o leitor nota estar imerso numa história sobre elos frágeis (ou jamais formados) e receio de uma vida condenada por certas condições, como se outros caminhos não fossem possíveis.
E há a ditadura num pano inicialmente de fundo, mas que ganha espaço já para o final da narrativa. Não é por acaso que encontramos em "Kramp", este livro povoado por personagens identificados por letras ou sequer isso, o nome completo de Jaime Andrés Suárez Moncada, o desaparecido político responsável por mudar os rumos da vida da mãe de M. Pessoas sumidas durante a carnificina de Pinochet estão no centro de um outro livro de María José Ferrada que saiu há pouco no Brasil: "Crianças" (Pallas Mini), sobre os 34 meninos e meninas com menos de 14 anos perseguidos e assassinados pelos militares chilenos - escrevi a respeito aqui.
Formalmente, a ditadura de Augusto Pinochet chegou ao fim em 1990, após o plebiscito de 1988 para consultar se o ditador deveria ou não permanecer no poder. Um arranjo com partidos de todo o espectro democrático, capazes de compor a tal frente ampla, foi decisivo para a improvável vitória da oposição. Na ficção, o momento foi romanceado por Antonio Skármeta em "O Dia Em Que a Poesia Derrotou um Ditador", livro simples, às vezes um tanto óbvio e estilisticamente pobre, que saiu no Brasil pela Record em tradução de Luís Carlos Cabral e há pouco ganhou uma nova roupagem em edição do clube de assinaturas Tag. Entre professores perseguidos pela ditadura e o desenvolvimento da histórica campanha publicitária pelo pé na bunda de Pinochet, um amor juvenil se desenvolve, no que resulta numa metáfora batida sobre o futuro do país. Não deixa de ser uma via para conhecer aquele momento do processo de redemocratização, em todo caso.
Só que para alguns o tal futuro nunca chega. Ou nunca chega em sua plenitude. Se "Kramp", de certa forma, é uma história sobre a ditadura em curso e "O Dia Em Que a Poesia Derrotou um Ditador" narra os últimos dias do período tenebroso, "A Subtração" se passa após o fim do regime militar. O livro mostra, no entanto, que o tempo da ditadura na vida das pessoas segue uma lógica diversa. Derrubar um ditador e estabelecer uma democracia não encerra os traumas e problemas provocados pelo regime de exceção. Como bem constatamos, aliás, ao nos sufocarmos com a sanha e a sordidez dos trogloditas fãs de torturadores e tipos autoritários, cujos sentimentos podres não sumiram com o fim da nossa própria ditadura.
Romance de outra chilena, Alia Trabucco Zerán, "A Subtração" também foi traduzido por Silvia Massimini Felix e publicado aqui no Brasil pela Moinhos no final de 2020. Finalista do The Man Booker International Prize de 2019, no romance acompanhamos a jornada dos jovens Iquela, Felipe e Paloma, filhos de militantes que se engajaram contra a ditadura chilena. Eles saem de Santiago e rumam para Mendoza, na Argentina, para tentar encontrar o corpo da finada mãe de Paloma, perdido após uma lambança da companhia aérea que o transportava da Europa para o Chile.
Numa narrativa fragmentada, com alternância de vozes e que parte da eleição que levou o Chile à redemocratização, temos contato com a geração que vem depois da ditadura, mas que segue guiando o rabecão, em atrito com os fantasmas deixados pelos militares. Marcados pelos sumiços, pela justiça que nunca chega, pelos corpos jamais enterrados, pelos lutos incompletos, pelas histórias sem desfecho, pelo exílio, por um passado que pesa no presente da mesma forma como a mochila com os nomes dos desaparecidos pesa nas costas da mãe de M em "Kramp", são pessoas condenadas pela herança abjeta deixada por Pinochet e seus pares.
Há condições inescapáveis. Condições que precisam se tratadas com seriedade, profundidade, rigor e justiça para que não impeçam o trilhar de certos caminhos. O Brasil está aprendendo isso da pior maneira possível.
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