Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Joan Didion e as vidas (e os lugares, e os sonhos...) que desmoronam
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Num país que dá tanta bola para qualquer tranqueira que venha dos Estados Unidos, é um mistério Joan Didion não ter virado um nome bem mais conhecido entre os leitores brasileiros. Uma das gigantes do new journalism, mulher que ombreia com incensados como Gay Talese e Tom Wolfe, em 2018 Didion ganhou nova chance por aqui, após a HarperCollins lançar uma nova edição de "O Ano do Pensamento Mágico" e trazer para o Brasil "Blue Nights".
O primeiro é o grande livro de Didion. A partir de uma tragédia pessoal (a repentina perda do marido na véspera do ano novo, enquanto lidavam com a filha moribunda acamada no hospital), a jornalista se põe a investigar o luto e a delinear o instante em que a vida de alguém muda drasticamente. O rigor, o interesse por diferentes culturas e a disposição em mergulhar em temas dolorosos sem choramingar (e, na base disso, o repúdio à autocomiseração) são decisivos para que Didion entregue ao leitor um trabalho incontornável, que não traz nada da pieguice que seu título, "O Ano do Pensamento Mágico", pode nos fazer supor.
Quando o texto do livro já estava praticamente pronto, mais luto: agora a filha outrora internada que partia, aos 39 anos. A relação de Didion com a cria adotiva e a busca pela compreensão do processo que leva alguém a se tornar de fato mãe estão em "Blue Nights". Nele, a escritora ainda mostra ao leitor as dificuldades de lidar com um cérebro, ferramenta primordial para seu trabalho, que acusa os sinais da idade e se apresenta bem menos confiável do que num passado recente. A decrepitude começara a dar as caras.
Um ano antes de "O Ano do Pensamento Mágico" e de "Blue Nights" chegarem às nossas livrarias pela HarperCollins (este traduzido por Ana Carolina Mesquita, aquele, por Marina Vargas), a Netflix havia lançado "The Center Will Not Hold", documentário fundamental para quem deseja conhecer um pouco melhor a trajetória da jornalista vencedora do National Book Award de 2005. Uma pena que o filme também não tenha projetado significativamente o nome da autora por essas bandas - se essa minha impressão estiver equivocada, podem dizer, ficarei mesmo feliz.
Mas quem sabe agora vai. Se em uma das camadas de "Blue Nights" temos Didion apresentando um certo definhar, no livro que a Todavia acaba de publicar a jornalista está em plena forma. Traduzido por Maria Cecilia Brandi, "Rastejando Até Belém" foi lançado originalmente em 1968 e sai pela primeira vez no Brasil. O título reúne 20 textos que Didion escreveu ao longo da década de 1960. São reportagens, perfis, ensaios e reflexões que mostram muito dos conflitos sociais e culturais do país naquela época, especialmente a partir da costa oeste norte-americana.
"Rastejando Até Belém" é dividido em três partes. Em "Pessoais", encontramos textos de Didion sobre sua formação, reflexões a respeito do trabalho e andanças pelo mundo. Uma das frases mais famosas da autora ("A inocência termina quando arrancam da pessoa a ilusão de que ela gosta de si mesma") está nesse segmento. Também há achados como a "moralidade das caravanas de carroças", que, no século 19, aplacava a culpa dos colonizadores que recorriam ao canibalismo para sobreviver às dificuldades das truculentas marchas ao oeste.
A capacidade de Didion surpreender o leitor ao driblar o lugar-comum pode ser notada em "Carta do Paraíso, 21º 19'N, 157º 52'O", uma das melhores peças de "Sete Lugares na Mente", a terceira parte, que reúne escritos da jornalista sobre diferentes destinos. "Se existe uma única aura que permeia Honolulu, um clima que empresta um brilho febril às luzes, uma absurdez de partir o coração aos catamarãs cor-de-rosa e que ativa a imaginação como um mero paraíso jamais faria, esse clima, inevitavelmente, é de guerra", escreve. A matéria se opõe à ideia paradisíaca do território estadunidense no Pacífico para mostrar como períodos sangrentos, com seus deslocamentos e aportes financeiros, foram fundamentais para o desenvolvimento do Havaí.
É na primeira parte - "Estilos de Vida na Terra do Ouro" - que estão os textos sobre babacas excêntricos podres de rico, jovens com ideais revolucionários, estrelas já nem tão brilhantes assim e doidões que compartilham ácido até com o filho de cinco anos de idade. Uma das principais virtudes de Didion é a consciência de que ter uma forte pegada autoral é bem diferente de se intrometer a todo momento na história ou socar o próprio julgamento diante das sandices encontradas. Entre perfis e reportagens que, em alguns casos, podem muito bem ser lidas como contos (basta ignorar o lastro jornalístico do que é apresentado), o leitor se aproxima de uma sociedade em que a busca pelo ouro de tolo é uma constante, a demagogia do "cidadão de bem" impera e sonhos e ilusões caminham juntos para o abismo.
"Há sempre um ponto na escrita de um texto em que me sento em uma sala literalmente forrada de tentativas frustradas, não consigo encadear uma palavra após a outra", registra Didion no prefácio, o que nos dá uma ideia do trabalho que há por trás de sua literatura. Em "Rastejando Até Belém" a jornalista desvela muito da hipocrisia norte-americana, mostrando o que há além das aparências pré-fabricadas.
Numa época em que Trump se torna um líder extremamente popular, grupos de terroristas brancos marcham seu ódio pelas ruas e um bando encabeçado por um tipo com cornos invade o congresso do país, talvez as entranhas dos Estados Unidos já estejam completamente expostas, ofuscando um pouco das surpresas e nuances apresentadas naqueles textos da década de 1960. Ainda assim, a obra de Didion (e aqui resgato "O Ano do Pensamento Mágico" e "Blue Nights") segue como uma profunda reflexão sobre vidas - e sonhos, e lugares, e relações, e comunidades... - que desmoronam.
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