Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Orwell, a guerra da Espanha e a luta pela humanidade dos humanos
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"Viera para a Espanha com a vaga ideia de escrever artigos para a imprensa, mas ingressei na milícia quase imediatamente, porque naquele tempo e naquela atmosfera parecia a única coisa imaginável a se fazer. Os anarquistas tinha controle virtual da Catalunha, e a revolução ia de vento em popa. [...] Pela primeira vez na vida, me encontrava numa cidade onde a classe trabalhadora estava no comando. Praticamente todos os prédios, do tamanho que fosse, tinham sido tomados pelos trabalhadores e estavam enfeitados com bandeiras vermelhas ou com a bandeira rubro-negra dos anarquistas. [...] Até mesmo os engraxates tinham sido coletivizados. [...] Ninguém dizia 'señor' ou 'don'. [...] Havia muita coisa que eu não compreendia, e de muitas delas de certa forma nem gostava, mas reconheci imediatamente que era um estado de coisa pelo qual valia a pena lutar".
No início deste ano, depois que a obra de George Orwell entrou em domínio público, a impressão é que mais ou menos todas as editoras do Brasil lançaram suas versões de "1984" e de "A Revolução dos Bichos", vez ou outra também batizado como "A Fazenda dos Animais". Agora, títulos que não encontrávamos antes em nossas livrarias, sempre bem servidas dos clássicos do britânico, começam a dar as caras.
Em "Lutando na Espanha", a Biblioteca Azul reuniu "Homenagem à Catalunha", livro que esperava há anos para ler, e outros escritos de Orwell sobre a sua participação na Guerra Civil Espanhola (a tradução é de Ana Helena Souza). Em dezembro de 1936, Orwell se alistou na milícia pela qual combateu até junho de 1937. Já no ano seguinte, antes mesmo do fim do conflito, lançou a primeira edição do relato com que viu e viveu na Espanha.
Em "Recordando a Guerra Civil Espanhola", ensaio de 1943 que também faz parte dessa edição da Biblioteca Azul, o escritor aponta: "A verdade geral sobre a guerra é bastante simples. A burguesia espanhola viu sua chance de esmagar o movimento operário e agarrou-a, ajudada pelos nazistas e pelas forças de reação em todo o mundo. É duvidoso que algo além disso seja estabelecido".
Não é esse cenário cristalino que o leitor encontra em "Homenagem à Catalunha". Para defender a condição apontada no trecho que destaquei na abertura deste texto, o escritor se meteu num conflito que reunia grupos de diferentes linhas ideológicas, como anarquistas, comunistas, socialistas, monarquistas, falangistas e nacionalistas, todos sob influência de pressões vindas da União Soviética de Stálin, da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler. É um bom livro para perceber nuances do espectro político, sem dúvidas.
Orwell jamais escondeu o seu lado. Não é demais lembrar que em 1946, no ensaio "Por Que Escrevo", registrou que tudo o que cunhou a partir de 1936 foi para, de alguma forma, combater o totalitarismo e fortalecer o socialismo democrático. Com seu olhar arguto, notou na Catalunha: "Parecia que, atualmente, nem em Barcelona havia mais touradas; por algum motivo, todos os melhores matadores eram fascistas". Com um tino raro para captar contradições, também explora no texto as dúvidas, sacanagens e traições encontradas no seu lado da trincheira.
As dificuldades pouco óbvias do conflito estão presentes no texto de Orwell. O grupo do qual fazia parte penava com as armas precárias e com a falta de treinamento. Num cenário de pouca batalha e muita expectativa, o cheiro característico da guerra (de "excremento e comida estragada") ficou como marca. A falta de vontade de atirar de verdade em outro ser humano também é registrada pelo escritor.
"A guerra, para mim, significava projéteis rugindo e estilhaços ricocheteando; acima de tudo, significava lama, piolhos, fome e frio", compartilha em certo momento de "Homenagem à Catalunha", evidenciando como o inimigo vira, muitas vezes, um problema secundário. Só que em certa altura da experiência de Orwell o bicho pega, as bombas explodem, o horror se instala e é preciso procurar por alguma arma em meio aos soldados mortos.
A impressão que fica é que a guerra - ou aquele tipo de guerra - era assim: muito tempo sem nada para fazer, até que, de repente, você está no meio de bombardeios e torcendo para bala alguma encerrar os seus dias. Sorte se, de repente, for atingido e conseguir sobreviver. Foi o que aconteceu com o escritor, que, fora de combate, chega a elogiar a qualidade do café da manhã de um dos hospitais. Vinho branco era servido aos enfermos já no café da manhã.
Um dos traços da escrita de Orwell é a noção das próprias limitações e a honestidade em lidar com isso, algo que deveria ser caro a qualquer intelectual que se preze. "Cuidado com meu partidarismo, meus enganos sobre os fatos e a distorção inevitável causada por ter visto apenas uma parte dos acontecimentos", alerta.
Entre ironias, decepções, desilusões e a quebra de certo idealismo, algumas vezes o escritor compartilha com o leitor o sentimento de ser parte daquela luta. Nesse aspecto, é emblemático quando registra o "sentimento de ter-se subitamente emergido numa era de igualdade e liberdade. Os seres humanos estavam tentando se comportar como seres humanos e não como dentes da engrenagem capitalista".
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