Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
É isto um país?
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"Um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".
Estado Democrático. Direitos sociais e individuais, Liberdade, segurança, bem-estar, igualdade e justiça. Sociedade fraterna. Solução pacífica das controvérsias - destaco o pacíficas. Não é delírio exigir que todas as esferas do Estado brasileiro sigam esses norteadores. A citação está no preâmbulo que abre a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, documento que precisa servir de base para ações de governantes de todas as escalas. Até onde sei, oficialmente a carta ainda não foi jogada no lixo.
As diversas polícias que temos pelo país representam as forças de segurança do governo, detentor do monopólio legítimo da força. Um policial na rua nada mais é do que um braço do Estado perto da população. Daí que ações policiais precisam ser ao mesmo tempo individualizadas e encaradas como parte de algo maior, com superiores que respondam em escala por essas ações. Governadores são os responsáveis pelas polícias militares, não custa lembrar.
Escrevo isso após mais uma morte que devasta qualquer um que não tenha virado cheerleader do caos nesta joça de nação. Kathlen Romeu foi assassinada no Lins, na zona norte carioca, durante uma operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, estado governado por Cláudio Castro (PSC).
Kathlen tinha 24 anos, era designer de interiores e estava grávida de quatro meses. Fosse menina, chamaria Maya; menino, Zyon. São vidas que não existem mais. Não é de hoje que o Estado brasileiro, por meio de seu braço que detém a força, ignora bases fundamentais da Constituição: segurança, bem-estar e, destaco novamente, solução pacífica das controvérsias.
Também ignora aquele "sem preconceitos" que consta no preâmbulo. De abordagens asquerosas e injustificáveis a gente que faz manobras com sua bicicleta num parque a operações que terminam em mortes e massacres, como na chacina do Jacarezinho, a cor das pessoas alvejadas é quase sempre a mesma. Sim, Kathlen era negra. Aliás, difícil não pensar em como a sociedade reagiria caso uma grávida branca do Leblon, Copacabana ou do Vivendas da Barra terminasse assassinada numa ação policial. Com a licença de Primo Levi, pergunto: é isto um país?
Na edição 82 do podcast, conversei com Jaime Lauriano, artista e coautor ao lado de Flávio dos Santos Gomes e Lilia Moritz Schwarcz de "Enciclopédia Negra" (Companhia das Letras). No papo, Jaime fala sobre a necessidade de assumirmos que isso daqui jamais foi, de fato, uma República para que tenhamos clareza daquilo que precisamos construir. Não é mesmo uma República um lugar que tem tanto desprezo pela vida de parte gigantesca de sua população.
"A grande utopia deste livro é devolver à sociedade brasileira, sobretudo a negras, negros e negres, histórias e imaginários mais diversos e plurais. Essa é uma forma de colaborar para que nosso país seja mais republicano. É também uma maneira de qualificar nossa democracia, deixando de discriminar e assassinar setores da nossa sociedade que - segundo os termos do IBGE, que os classifica como pretos e pardos - hoje correspondem a 56,1% da população".
É o que escrevem os autores na introdução da enciclopédia. Junto com o que estipula a Constituição, são utopias que precisamos urgentemente perseguir e construir. Só assim que começaremos a ter dias menos sangrentos.
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