Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
O que sobra se apagarmos a memória de uma sociedade?
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Numa ilha apartada do mundo, a memória está sempre sob risco. Do dia para a noite, os moradores do lugar acordam com algum novo sumiço. De repente, após uma ação ligeira, é como se flores nunca tivessem existido. Ao mesmo tempo em que há a limpeza física, a ideia de uma flor desaparece da mente de quase todos os cidadãos daquela ilha. O mesmo se repete com outros elementos: pássaros, livros, partes do corpo humano. Para se certificar de que os apagamentos estão sendo respeitados, a polícia secreta busca patrulhar todos os cantos da região.
Há traços fantásticos e distópicos em "A Polícia da Memória", romance da japonesa Yoko Ogawa que acaba de sair por aqui pela Estação Liberdade (tradução de Andrei Cunha). Publicado originalmente em 1994, o livro fez certo barulho num passado recente, após a sua versão em inglês chegar à final do International Booker Prize 2020 e do National Book Awards 2019. O insólito, uma das principais marcas da da autora, também está presente no trabalho.
O leitor acompanha os apagamentos da ilha e as perseguições policiais pela perspectiva de uma escritora (autora de romances pouco inspirados, a julgar pelo que conhecemos na própria obra). A mulher convive de perto com um velho amigo que se esvazia conforme o memoricídio se alastra, um cachorro brincalhão que sofre com os desaparecimentos e um editor capaz de preservar lembranças daquilo que já se foi. As construções afetivas também se destacam nos romances de Ogawa.
Numa história com toques de Orwell, Bradbury e Borges, encontramos em "A Polícia da Memória" uma metáfora sobre a vida esmagada por um regime totalitário capaz de abalar inclusive o que há de mais íntimo em cada um. Com o avançar dos apagamentos, os que de alguma forma resistem são perseguidos e precisam tentar a vida clandestina, sobreviver em esconderijos que se transformam numa espécie de exílio.
As rupturas se tornam inevitáveis. Enquanto isso, desprovidos de lembranças, de bases culturais e de elementos que dão alguma cor à vida, os que se esvaziam a cada novo ataque da força superior aos poucos se tornam ocos. Aquela pequena sociedade, por sua vez, passa por um processo de inanição.
Yoko Ogawa é também autora de "A Fórmula Preferida do Professor" e "O Museu do Silêncio", outros de seus romances publicados no Brasil (escrevi sobre eles aqui). São livros que estão um patamar acima de "A Polícia da Memória", que peca pela linguagem excessivamente melosa em alguns momentos pontuais e apresenta certo desequilíbrio na estrutura, com passagens pouco interessantes que, apesar da relevância dentro da narrativa, são mais longas do que o necessário. Em todo caso, apesar de algumas escolhas questionáveis da autora, não é um livro para se ignorar.
Aliás, é inegável que uma história sobre o apagar do passado, a manipulação de nossas intimidades, o esvair daquilo que nos faz humanos, o desmanchar de uma comunidade e a perseguição sistemática aos que de alguma forma resistem a esses ataques tem muito a ver com os nossos dias.
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