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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Enciclopédia de seres comuns: um olhar afetuoso a bichos e plantas

Ilustração de Pequena Enciclopédia dos Seres Comuns - Julia Panadés
Ilustração de Pequena Enciclopédia dos Seres Comuns Imagem: Julia Panadés

Colunista do UOL

21/06/2021 10h13

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Em 2016, durante uma Flip, entrevistei Maria Esther Maciel por conta do lançamento de "Literatura e Animalidade" (Civilização Brasileira). No papo, ela elogiou a maneira de Guimarães Rosa representar os bichos e disse ser um horror infantilizar os animais, desrespeitando a própria animalidade, a singularidade e as capacidades de cada espécie. "Sempre quis entender o enigma que é o animal, que é um sujeito que pensa, sente, tem medo e até mesmo sonhos. O que me moveu foi ao afeto", falou em certo momento da conversa.

Agora, Maria Esther, escritora e pesquisadora, dá mais um passo nessa investigação. Ela acaba de lançar "Pequena Enciclopédia dos Seres Comuns" (Todavia), no qual transita livremente entre informações científicas, lendas, ditos populares e fabulações para construir verbetes sobre mais de 70 bichos e plantas. Dividido entre Marias, Joões, Viúvas e Viuvinhas, Híbridos e Et Cetera, é um livro terno, que ganha o leitor pela delicadeza e simpatia. As ilustrações de Julia Panadés, diga-se, dão uma força para tal.

Pelas páginas da obra, encontramos personagens como a Maria-Boba, aquela que "não tem nada de tonta. Apenas assume um jeito zen de lidar com as coisas", que se torna nociva quando adulta e pune com veneno as suas presas. Já a Maria-Dormideira, com seu sonho fingido, remete à infância, o que contrasta com um dado curioso: "para ter sonhos eróticos vívidos, muitas mulheres põe um ramo dessa maria sob o travesseiro, em noites de lua cheia". O monogâmico João-De-Barro, por sua vez, quando fica enciumado, fecha-se no ninho e lacra a porta - isso segundo dizem por aí, pois os cientistas desmentem, lemos.

Pequena Enciclopédia dos Seres Comuns - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Enciclopédia que serve principalmente à apreciação e ao deslumbramento, a obra orbita entre "O Livro dos Seres Imaginários", de Jorge Luis Borges, e "De Natura Florum", breve herbário narrativo de Clarice Lispector. Nas páginas de Maria Esther bons encontros também são possíveis. João-Cachaça é um peixe carnívoro que, diz a lenda, foi um "homem que caiu nas águas do mar quando embriagado". Ele costuma "se esconder sob as pedras nas tardes de domingo. Depois, volta para a noite, com um olhar bêbado, oblíquo". Minha identificação com esse camarada dispensa maiores explicações.

Entre referências literárias como João-Grilo, que emprestou o nome ao famoso personagem de Ariano Suassuna, e sacadas como a Viuvinha-Humana, que não é triste, mas está por conta da "saudade doída do que foi irreversivelmente perdido", Maria Esther também lança críticas ao tratamento que o bicho homem dispensa a outros animais. Por que os "humanos insistem em levar para casa, como se fosse adestrável", o Cágado-Tigre D'Água, réptil às vezes encontrado em vitrines de lojas que se transformam em cárceres? É razoável o Mico-Leão ter como verdadeiros inimigos não seus predadores, mas aqueles que trucidam florestas para a boiada passar ou lhes sequestram para traficar?

Maria-Farinha (ou caranguejo-fantasma), por sua vez, teme mesmo é ser jogada na água fervente pelos humanos que querem comê-la, o que nos faz lembrar de "Pense na Lagosta", ensaio no qual David Foster Wallace discorre sobre o sofrimento do bicho que é fervido ainda vivo. Entre a beleza, o afeto e a crítica, é inegável a contribuição de Maria Esther Maciel para a discussão da ética em relação aos animais dentro da literatura.

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