Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Entre culturas africanas e a colonização britânica: leiam Buchi Emecheta
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"Algumas pessoas de Ibuza têm um provérbio que diz que as brigas entre parentes ficam só na superfície da pele, elas nunca penetram até os ossos. Eles têm outro ditado, que diz que, no dia de parentes de sangue, os amigos se vão".
Após a morte do pai, uma jovem deixa Lagos e volta para a pequena Ibuza, onde crescerá em meio às tradições do lugar. Visto como um acinte por outras pessoas do povoado, o amor dessa garota por um ascendente de antigos escravizados enfrentará sérios percalços.
É esse o ponto de partida de "Preço de Noiva", romance da nigeriana Buchi Emecheta que acaba de sair pela Dublinense, casa da autora no Brasil. A tradução é de Julia Dantas, que já tinha vertido para o português "No Fundo do Poço". Os outros dois livros de Buchi disponíveis em nosso mercado, "Cidadã de Segunda Classe" e "As Alegrias da Maternidade", foram vertidos por Heloisa Jahn.
Primeiro a chegar por aqui, "As Alegrias da Maternidade" fez com que Buchi conquistasse uma admirável quantidade de fãs brasileiros. Após ser indicado por Chimamanda Adichie para o clube de assinaturas TAG no final de 2017, o nome da nigeriana começou a se alastrar entre os leitores. Desde então, seus quatro livros venderam mais de 60 mil exemplares e as versões em áudio desses romances chegaram a quase 30 mil streamings ou downloads pagos. É bom que haja tanta gente interessada numa obra de tamanha qualidade.
Buchi nasceu em 1944 em Lagos, capital da Nigéria. Passou parte da infância em Ibuza e depois voltou para a cidade natal, onde estudou numa escola de elite graças a uma bolsa. Sua vida foi dura. Casou aos 16 e, pouco depois, mudou-se com o marido para Londres. Viveu na Inglaterra por cerca de 50 anos, onde morreu no começo de 2017. O casamento, no entanto, durou bem menos. Aos 22 anos, após sofrer uma série de violências, já estava divorciada. Deu seu jeito para sobreviver e cuidar dos cinco filhos. Parte desse jeito envolveu a escrita, o trabalho em lugares como a Biblioteca de Londres, a graduação em Sociologia e a consolidação como uma das autoras mais respeitáveis de seu tempo.
O esmiuçar de cada um dos livros ficará para outros momentos, espero. Por ora, faço um panorama das minhas leituras de Buchi. Para que o leitor se situe, um dado é importante: "As Alegrias da Maternidade" e "Preço de Noiva" são romances ambientados sobretudo na Nigéria da primeira metade do século 20, enquanto "Cidadã de Segunda Classe" e "No Fundo do Poço" se baseiam em muito do que a escritora viveu no começo de sua vida em Londres.
A tensão cultural entre os povos que já viviam no território nigeriano e as práticas e hábitos entuchados pelos ingleses durante a ascensão do Império Britânico é um dos elementos que mais chamam a atenção nas narrativas. Em solo africano, as novas imposições conflitam, se fundem ou se diluem nas confluências, rixas e contradições presentes no lugar antes da chegada dos colonizadores. Em outra chave, mas com polos invertido, tal tensão alcança o centro do império quando os cidadãos dos países invadidos passam a procurar outras possibilidades para a própria vida.
Racismo, machismo e misoginia permeiam todas as histórias. Diferentes formas de enxergar o papel da mulher na sociedade são apresentadas. Essas variações, contudo, possuem um ponto em comum: a truculência masculina. Entre as moças, por outro lado, há competição, mas também há muita camaradagem, muitas formas de apoio, muita sororidade, para usar um termo da vez.
Os embates entre crenças e visões de mundo são duas das marcas latentes na escrita de Buchi. A escola como meio para transformações, a luta para ter acesso a esses estudos, os conflitos entre gerações, o choque entre o urbano e o rural e a centralidade da família (com ares de clã, como é possível perceber na citação que abre esta coluna) são interesses da nigeriana. Bem como a colisão entre tradições que enaltecem o individualismo e outras que colocam a coletividade no plano principal.
"Uma coisa dessas não é permitida na Nigéria; você simplesmente não está autorizado a cometer suicídio em paz, porque todos são responsáveis uns pelos outros. Os estrangeiros podem dizer que somos um país de intrometidos, mas, para nós, uma vida individual pertence à comunidade e não simplesmente a ele ou ela. De modo que uma pessoa não tem o direito de acabar com a própria vida enquanto outro membro da comunidade estiver olhando. Esse outro é obrigado a interferir, é obrigado a impedir que o fato aconteça".
O trecho acima está em "As Alegrias da Maternidade". Nesse romance é que temos a marca mais sublinhada de outro traço presente pontualmente em algumas histórias de Buchi: a Segunda Guerra Mundial. Interessante observar o conflito pela perspectiva de nigerianas que viram seus maridos e irmãos sendo enviados para a batalha contra um certo Hitler, mais um infortúnio com o qual são obrigadas a lidar por conta dos europeus.
A chance de vislumbrar a Segunda Guerra a partir de um ponto de vista pouco usual, através de uma das camadas de um dos romances da nigeriana, serve como exemplo das diversas leituras possíveis que a admirável obra de Buchi nos oferece.
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