Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ailton Krenak, Eliane Brum e nossas casas alagadas ou em chamas
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Tragédias por onde olhamos. Na Europa, semanas atrás tinha cidade alemã inteira debaixo d'água enquanto ilhas gregas e povoados turcos foram destruídos por incêndios. Nos Estados Unidos, um dos furacões mais fortes dos últimos anos leva o caos para a Louisiana. Já em Madagascar, a fome bate forte, consequência direta da seca.
A seca, a pior das últimas sete décadas, também míngua o rio Paraná. Energia elétrica? Temos pouca, pouquíssima: o apagão vem aí. Fogo? Aí temos de sobra. Boa parte do Pantanal já se foi. O pandemônio da Amazônia, há um ano, fez com que o dia de São Paulo virasse noite. Semana passada, por toda a cidade nevou fuligem de um parque ambiental carbonizado, cinzas de plantas e animais torrados. O Brasil tem suas tragédias particulares, mas não só está inserido como ocupa um papel fundamental na desgraça global.
Há um gigantesco e conhecido problema por trás disso tudo: as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global. E o que o país, um dos mais verdes do planeta, faz? Passa a boiada, ué. E passa a boiada de forma descarada, tratando a natureza como estorvo e ganhando aplausos (e votos, e apoio) dos obtusos. Que o Pantanal vire pasto para boi, que a Amazônia vire plantação de soja, dane-se o resto; o futuro está na grilagem e no garimpo - pensam, provavelmente.
Símbolo deste momento é a absurda discussão sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Não bastasse a razoabilidade ética, histórica e constitucional indicar a legitimidade e os direitos dos povos originários, qualquer decisão minimamente inteligente optaria pela preservação ambiental, não pela sua destruição. Não há como olhar para os dados, estudos e projeções e pensar que o futuro do planeta estará melhor nas mãos da bancada ruralista do que daqueles com cultura de simbiose do homem com a natureza.
Em certo momento da série "Guerras do Brasil.doc", Ailton Krenak, uma de nossas principias lideranças indígenas, olha para o entrevistador (um "homem branco") e dispara: "Não sei por que você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra". A guerra prossegue, mas um dos lados ainda não se tocou que o seu suposto sucesso representa, na verdade, a ruína de todos.
Num dos textos de "Ideias Para Adiar o Fim do Mundo" (Companhia das Letras), Krenak recorda de uma resposta que deu em 2018 para uma pergunta a respeito do futuro dos indígenas no Brasil. "Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa".
Lembro de uma entrevista que fiz em 2019 com Eliane Brum, das jornalistas que mais admiro. Ela lançava o livro "Brasil, Construtor de Ruínas - Um Olhas Sobre o País, de Lula a Bolsonaro" (Arquipélago) e falou sobre como viver na Amazônia do Médio Xingu lhe apresentou outra compreensão de vida. Conviver com povos indígenas e beiradeiros, que já tiveram suas versões do fim do mundo, deu à jornalista uma nova perspectiva de como lutas podem ser travadas. "[Eles] usam a alegria como 'potência de agir'. A alegria de estar junto e de compartilhar a vida, mesmo na catástrofe. Riem por desaforo diante dos déspotas do mundo".
Na entrevista, consciente das tragédias ambientais que se sucedem, a jornalista dizia que, aos 53 anos, tinha noção de que ainda viveria num planeta pior do que aquele. Na época, sem pandemia no radar, tínhamos sim uma Terra menos terrível do que esta de 2021. Mas não se enganem, a coisa vai piorar. E muito. "Se o futuro será apenas ruim ou francamente hostil vai depender de a população acordar e passar a pressionar os governantes", alertou Eliane.
Pela apatia geral, talvez a população não acorde nem quando a própria casa for consumida pelo fogo, destruída pela seca, levada às trevas pela falta de energia ou inundada pelas águas.
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