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O Onze de Setembro e as vidas destroçadas pela guerra

Arte de Shamsia Hassani - Reprodução do Instagram
Arte de Shamsia Hassani Imagem: Reprodução do Instagram

Colunista do UOL

08/09/2021 09h54

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"Os americanos prometeram a eles uma vida melhor, mas os tanques ocupavam as ruas das grandes cidades, e iraquianos de quem nunca tinha ouvido falar voltavam ao país para ocupar cargos importantes do governo. Nas ruas, a justiça era feita pelas próprias mãos, como nos filmes de faroeste. Sunitas matavam xiitas. Xiitas matavam sunitas. Soldados americanos matavam civis iraquianos. Militares americanos morriam em ataques contra as tropas estrangeiras. Sair de casa e voltar viva era uma loteria".

O 11 de setembro de 2001 ainda não chegou ao fim. Depois que atentados nos Estados Unidos mataram quase 3 mil pessoas, os norte-americanos foram para guerras que destroçaram países e deixaram centenas de milhares de mortos (mais de 157 mil no Afeganistão, até 600 mil no Iraque, 70 mil no Paquistão). Surgimento do Estado Islâmico e o recrudescimento do Talibã são dois exemplos de como os desdobramentos prosseguem. Com a desculpa de travar uma batalha contra o terrorismo, os liderados por Bush, Obama e Trump levaram a sua versão do horror a países que já tinham seus próprios monstros para tentar lidar.

Em "O Vento Mudou de Direção - O Onze de Setembro que o Mundo Não Viu" (Fósforo), Simone Duarte reconstrói essa ampla história dos atentados da perspectiva de pessoas que tiveram suas vidas estraçalhadas por conta do revanchismo norte-americano. Jornalista que cobriu os atentados contra as Torres Gêmeas pela TV Globo (no livro, uma reconstituição do minuto a minuto da cobertura transmite ao leitor a sensação de desnorteio daquele momento), Simone investe na história de pessoas comuns para mostrar como aviões arremessados contra prédios dos Estados Unidos acabaram por levar o caos para o Afeganistão, o Iraque e o Paquistão.

O Vento Mudou de Direção - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

São sete os protagonistas de Simone: um moço preparado na infância para ser garoto-bomba, o jornalista que fez a última entrevista com Osama Bin Laden antes dos atentados, um general e ex-espião, uma poeta que foi obrigada a tentar a sobrevivência nos Estados Unidos, longe de sua língua materna, e três outras pessoas que buscam reerguer a vida como refugiados em diferentes países. A escolha de personagens que representam determinados aspectos da região, a opção por tratar um momento histórico a partir da vida dessas pessoas e a forma fragmentada de construir a narrativa lembram "Hiroshima", de John Hersey, um dos maiores monumentos da literatura de não ficção.

Por meio desses relatos que temos contato com gente que buscava tocar o dia a dia apesar das adversidades. Gente que se encantava com Gabriel García Márquez ou pegava firme nos estudos enquanto tentava construir um bom futuro para si. São símbolos das milhões de vidas comuns arruinadas pela guerra. E aí recordo de Fabien Toulmé. Na primeira parte de "A Odisseia de Hakim", HQ sobre a busca pela sobrevivência de um refugiado sírio, o personagem diz: "Nunca pensei que isso pudesse me acontecer. Mas me dei conta de que qualquer um pode virar um 'refugiado'. Basta que seu país desmorone. E aí, ou você desmorona junto, ou vai embora". O livro de Simone também é feito desses desmoronamentos.

Algumas imagens de "O Vento Mudou de Direção" impregnam na cabeça do leitor. Garotas que tentam burlar as leis arcaicas do Talibã e vão escondidas para escolas clandestinas, com livros e cadernos disfarçados em sacos pretos, como se fossem lixo, é uma delas. Outra é a lembrança da barbárie iraquiana, onde gente assistia execução sumária em praça pública e depois partia para o colégio, preocupada em não perder a prova. Também tem força o momento em que um dos protagonistas, refugiado na Áustria, entra em crise enquanto varre um salão. "Estariam todos eles agarrados a uma vassoura num grande salão vienense perdidos numa dança sem fim?", indaga Simone.

É a impressão que o livro deixa. Junto com militares, foguetes e tanques, os Estados Unidos levaram muita grana para a região. Dinheiro alto e armamento pesado foram despejados nas mãos de senhores da guerra enquanto a radicalização crescia numa espécie de contraponto à islamofobia em ascensão no Ocidente. Com o Talibã de volta ao poder no Afeganistão, o livro chega aos leitores bem na hora em que um novo capítulo daquele 11 de setembro de 2001 é escrito.

Ainda sobre passagens marcantes de "O Vento Mudou de Direção", declarações de dois personagens merecem destaque. Um deles, ao falar sobre alianças com os norte-americanos, é enfático: "Quando se trata de Estados Unidos, você deve dar tudo, e mesmo assim eles tiram tudo". Já outro chacoalha a noção de justiça: "Não é justo Rumsfeld [ex-secretário de Defesa dos EUA] e Bush estarem vivos e livres e meu país estar desse jeito".

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