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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Beleza, solidariedade e brutalidade na vida de uma travesti

Camila Sosa Villada - María Palacios
Camila Sosa Villada Imagem: María Palacios

Colunista do UOL

22/09/2021 04h00

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"O céu das travestis deve ser belo como as paisagens deslumbrantes da recordação, um lugar para passar a eternidade sem se entediar. As lobas travestis biscates que morrem no inverno são acolhidas com especiais pompa e alegria, e naquele mundo paralelo recebem toda a bondade que este mundo mesquinho lhes negou.

Enquanto isso, as que permanecemos por aqui, bordamos com lantejoulas nossas mortalhas de linho".

Recém-chegada a Córdoba, segunda maior cidade da Argentina, foi num parque um tanto escuro que encontrou apoio. Carregava uma história marcada pela violência, pelo pai alcoólatra que não aceitava o "menino afeminado que não cedeu às cintadas, ao castigo, aos gritos e às pauladas". Desprezada pela família pobre e ignorante, que se espantou com o "filho veado. E muito pior: o veado convertido em travesti".

Estamos diante de um trabalho assumidamente autobiográfico. A protagonista de "O Parque das Irmãs Magníficas" (Tusquets, tradução de Joca Reiners Terron) espelha a trajetória da autora, a atriz e escritora argentina Camila Sosa Villada. É uma literatura feita de sonhos, belezas e ruínas. Terna, dolorosa, melancólica, é uma ficção que às vezes peca por se explicar demais, mas acerta - e muito - ao apresentar uma narrativa pessoal com toques fantásticos que se mistura e quase se dilui na história de diversas personagens, algumas delas memoráveis.

Exemplo é Tia Encarna, matrona de 168 anos cujo corpo carrega a história da pátria argentina, essa "merda" pela qual juraram "morrer em cada hino cantado nos pátios da escola", que "levou vidas de jovens em suas guerras", que "enterrou gente em campos de concentração". É a tia que abre as portas de casa para as travestis em busca de amparo.

Figura central em "O Parque das Irmãs Magníficas", Encarna se enamora por um dos Homens Sem Cabeça, grupo de refugiados que chegou a Córdoba ainda com areia nos pés, fugindo das guerras africanas. Também é Encarna quem cria um bebê encontrado pelas travestis numa vala com ares de manjedoura. São as rechaçadas que aninham o pequeno descartado, nomeado de O Brilho dos Olhos.

O Parque das Irmãs Magníficas - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Apesar das cores, de certo lirismo, de amores ligeiros e da solidariedade entre as travestis, "O Parque das Irmãs Magníficas" tem uma história sangrenta, pesada, feita por pessoas que vivem com um pé em cada pátria, para voltar às palavras do romance. Pessoas que buscam por formas de viver como homem e mulher num corpo dividido entre a própria natureza e as pressões, coações, demagogias e truculências da sociedade.

O corpo em constante transformação define a vida das personagens de Camila. São açoitadas por causa dele. Conseguem dinheiro graças a ele. São forçadas a agir à sombra pelas características desse corpo. Os homens que as procuram enquanto se prostituem - esse caminho quase inevitável - só o fazem às escondidas. E cada programa tem a sua imprevisibilidade. Nunca sabem o que esperar de cada cliente quando conseguem o mínimo de privacidade.

"Na verdade, somos noturnas - para que negar isso? Não saímos de dia. Os raios de sol nos enfraquecem, revelam as indiscrições de nossa pele, a sombra da barba, os traços indomáveis do homem que não somos. Não gostamos de sair de dia porque as massas se revoltam diante dessas revelações, expulsam-nos com insultos, querem bater na gente e dependurar nas praças", constata a narradora.

Só que essas pessoas quase escondidas pela escuridão são muito mais do que um corpo que a tantos satisfaz ou(e) incomoda. Há o amor, o sofrimento, a ternura, o acolhimento, a amizade, as dúvidas, os erros e acertos. Há vida. Há pessoas tão complexas como quaisquer outras, claro, por mais que tanta gente lhes renegue essa humanidade - o arco e o comovente final de Encarna e Brilho simbolizam a extensão dessa brutalidade.

Pela narrativa bem construída, que quebra certos paradigmas relacionados às travestis e ressalta esse aspecto humano tão óbvio quanto frequentemente deixado de lado, que "O Parque das Irmãs Magníficas", vencedor do prêmio Sor Juana Inés de la Cruz em 2020, é um livro precioso e necessário.

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