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HQ retrata massacre que deixou até 200 mil mortos na Coreia do Sul
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Não é corriqueiro alguém contar uma história pela perspectiva de uma árvore. Olhei com desconfiança quando a HQ "Memórias de um Freixo", do sul-coreano Kun-woong Park (Conrad, tradução de Jae Hyung Woo), caiu nas minhas mãos. Junto com o estranhamento, veio a boa lembrança de "Das Memórias de Uma Trave de Futebol em 1955", conto publicado pelo mestre Sérgio Sant'Anna dias antes de sua morte. Na história, o leitor acompanha um treino do Fluminense pelo olhar de uma antiga trave prestes a ser retirada de campo. Perspectivas inusitadas podem render bem nas mãos de grandes artistas.
A pequena árvore está ali, enraizada num campo de onde jamais poderia sair. Surpreende-se quando homens começam a aparecer não para apanhar lenha, mas em fila, amarrados, acompanhados por gente armada e vestida com roupa diferente. "Memórias de um Freixo" é a adaptação de um romance escrito pelo também sul-coreano Choi Yong-tak. O que quebra a rotina de contemplação da planta são episódios do que entrou para a história como Massacre das Ligas Bodo.
Na década de 1950, no começo da Guerra da Coreia, oficiais da Coreia do Sul assassinaram milhares de civis que, sabiam ou deduziam, eram opositores políticos que poderiam ajudar a disseminar ideais comunistas pelo país. Exército e polícia mataram entre 100 e 200 mil pessoas, estimam estudos.
O freixo observador não entende muito bem toda aquela movimentação no seu campo. Presencia centenas de supostos dissidentes desesperados com a iminência do abate. Também ouve militares dizendo maquinalmente que estão ali apenas para cumprir ordens. Diante da série de execuções, assume-se admirado com o empenho dos humanos para dar conta do trabalho, qualquer tipo de trabalho.
É com frieza que a árvore acompanha a mortandade de membros de uma espécie tão diferente. A perspectiva amoral faz com que o leitor reflita sobre o quanto as atitudes mais bárbaras tomadas pelos homens contra seus pares pouco ou nada representam para a natureza, o restante do mundo, do universo. Essa indiferença latente na visão do freixo também nos faz refletir sobre o dar de ombros dos próprios humanos diante dos maiores horrores.
Ao relatar a forma como aquelas mortes alimentam o ciclo de diversas vidas, a planta escancara como não há nada de especial naqueles que se intitulam superiores em relação a outros seres vivos. O massacre vira uma festa para vermes, insetos, ratos, cachorros? "Seja como for, não era um acontecimento ruim. Afinal, foi a primeira vez que presenciei a tal cena? e o sangue humano derramado? e os pedaços de carne? era recursos abundantes inesperados para muitas criaturas do vale".
Só que a opção por contar a história pela ótica de um freixo também traz óbvias limitações. Estranho seria se a planta conhecesse e transmitisse ao leitor todo o cenário político e bélico no qual a península coreana estava metida quando o massacre aconteceu. Ao ler a HQ, é legítimo sentir falta do panorama histórico durante a narrativa - pelo menos os breves textos de apoio ajudam nessa contextualização.
Com momentos extremamente pesados, capazes mesmo de causar incômodo, e uma arte que lembra as pinturas do equatoriano Oswaldo Guayasamín, mestre em retratar horrores deste lado do mundo, "Memórias de um Freixo" é um quadrinho visceral. Nele, por meio de uma perspectiva ousada, conhecemos um episódio macabro da história da Coreia do Sul que até outro dia era ignorado pelos próprios sul-coreanos.
Após os assassinatos, o Massacre das Ligas Bodo foi jogado para debaixo do tapete pelos líderes do país. Somente na década de 1990 que se intensificaram os trabalhos para passar a limpo o que aconteceu com aqueles milhares de civis aniquilados, numa série de investigações e revelações que se intensificaram com a implementação da Comissão da Verdade e da Reconciliação.
É sob a sombra do esquecimento de décadas e da complacência da Coreia do Sul em relação aos civis e militares criminosos que, numa nota no final do volume, Kun-woong Park, o quadrinista, deixa registrado: "Eu assistia aos filmes em que o protagonista planejava desde pequeno a vingança pela morte dos seus pais, mas que no final acabava por perdoar o antagonista. E estava crente de que isso era moralmente correto. Mas me parece que, no mundo em que vivemos, os problemas criados pela vingança são menores do que os problemas criados por não se vingar".
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