Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Uma utopia para Paulo Guedes, farialimers e outros homens-planilha
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Com frequência que a voz de Cássia Eller cantando "Blues da Piedade", de Cazuza, ecoa em minha cabeça. Canta para as pessoas de alma bem pequena, para aqueles que veem a luz, mas não iluminam suas minicertezas, para aqueles que ignoram a lua cheia e vivem de contar dinheiro.
Se nas esquinas o que encontro cada vez mais é fome e miséria, ainda há um Brasil cheio da grana, que parece viver apenas para contar os seus milhões e para namorar suas contas bancárias bem nutridas, suas aplicações cheias de gráficos glutões que só podem crescer e crescer, mesmo que isso represente a penúria de tantos.
É o Brasil feito por gente (até ministro da Economia, vejam só!?) com contas secretas em paraísos fiscais. É o Brasil dos farialimers e seus papinhos de fundos e day trade e pipipi pópópó. É um Brasil que tenta o impossível: reduzir tudo aos números de suas planilhas - o mais incrível é a quantidade de gente que toma no lombo e ainda aplaude essa meia dúzia de podres de rico.
Os homens-planilha olharão para o mundo que o português Afonso Cruz apresenta em "Vamos Comprar um Poeta" (Dublinense) e terão certeza de que estão diante de uma utopia. Ali, tudo é minuciosamente quantificado e metrificado. As manhãs muito bonitas são aquelas em que o ar cheira a dólares. Mamon, o avaro, tomou o lugar de deus. O afeto é visto como algo que, dizem, pode até trazer algum lucro, mas um lucro sem qualidade, já que não pode ser mensurado em números nem convertido em algo material.
"Hoje comi trinta gramas de espinafres, o quilo custa dois euros e trinta, é fazer as contas, precisamos de trinta cêntimos por dia para ter alguma vitamina K, diz um estudo. O pai exerceu vinte gramas de força na porta da cozinha e disse muito alto, antes de nos deixar na cara um ou dois miligramas de saliva, ou beijos, se quiserem ser poéticos: crescimento e prosperidade", começa a narradora, uma garota em idade escolar. É pela sua ótica que acompanhamos a família que entra em crise quando passa mais de trinta e duas horas sem consumir nada, sem contribuir para "a economia circular livremente, nem para o crescimento, nem para a prosperidade".
Certo dia, decidem comprar um poeta. Vão até uma loja onde aristas são vendidos como animais de estimação. Notam que a maior parte dos poetas é careca e usa barba. Os com óculos custam mais caro. Surpreendem-se com algo impensável para aquele mundo: um dos homens das palavras usa uma roupa sem patrocínio de marcas. Ali, como os anos em "Graça Infinita", de David Foster Wallace, ou como nossas "arenas" de futebol, nenhum espaço para a publicidade costuma ser desperdiçado.
Escolhem o poeta, levam o homem e o acomodam sob a escada, num espacinho de uns três metros quadrados. Na casa de um legítimo homem-planilha, desses pauloguedianos, esse poeta jamais entraria, e, se entrasse, provavelmente seria esquecido e definharia. Não é mesmo fácil para um escritor existir num lugar onde metáforas, histórias e fabulações são tidas como simples mentiras e artistas são tachados de "inutilistas", aqueles que não servem para nada.
Só que "Vamos Comprar um Poeta" é um livro sobre a força da poesia e o poder que essas "mentiras" têm de aguçar percepções, provocar insights - para ficar num outro termo farialimer -, e, sim, transformar a realidade. No final do volume, Afonso registra seu tributo a nomes como Szymborska, Bukowski, Herberto Helder, T. S. Eliot, Dylan Thomas e Teresa de Ávila. Aos poucos que o poeta comprado numa loja provoca abalos e muda a dinâmica daquela família. É bonito de ver como se desmancha a utopia dos homens-planilha.
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