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Entre Clarice Lispector e o Brasil estúpido: os contos de Chico Buarque

Chico Buarque - Divulgação/ Companhia das Letras
Chico Buarque Imagem: Divulgação/ Companhia das Letras

Colunista do UOL

25/10/2021 04h00

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Em crônicas do começo de 1968, Clarice Lispector escreve sobre Chico Buarque. "Além de ser altamente gostável, você tem a coisa mais preciosa que existe: candura. Meus filhos têm. E eu, apesar de não parecer, tenho candura dentro de mim", registra após convidar o artista para uma visita. Em outra, ao comentar uma carta que recebera de uma fã que adoraria conhecer ambos, dispara: "Ela, Chico, não entendeu que você não é meu ídolo: eu não tenho ídolos. Você para mim é um rapaz de ouro, cheio de talento e bondade. Inclusive fico simplesmente feliz em ouvir quinhentas vezes 'A Banda', e um dia desses dancei com um de meus filhos. Mas é só, meu caro amigo". Já numa entrevista, a escritora pergunta a Chico: o que é o amor? Os dois, então, dizem não saber defini-lo.

Esses encontros presenciais, sentimentais, intelectuais e de uma admiração recíproca entre Chico e Clarice ecoam em "Para Clarice Lispector, com Candura". Na história, um jovem escritor é recebido por Clarice em casa. Uma relação amistosa marcada pela curiosidade e alguma tensão se estabelece, até que o aspirante a poeta acaba tragado por Clarice. Após aqueles momentos junto à artista que tanto admira, o rapaz, obcecado, jamais conseguirá se desvencilhar da autora de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres".

"Para Clarice Lispector, Com Candura" é uma das oito peças de "Anos de Chumbo e Outros Contos", novo livro de Chico Buarque (Companhia das Letras). Após trilhar uma carreira respeitada e premiada no romance - são dele títulos como "Estorvo", "Budapeste" e "Leite Derramado" -, Chico agora estreia na ficção feita de prosa mais breve.

O Brasil dos últimos anos aparece com força nos contos de Chico. Mesmo em "Para Clarice Lispector, com Candura" há um aceno para os modorrentos textos apócrifos que arrancam emojis de coração e florzinha das tias do WhatsApp.

Em "O Passaporte", um "grande artista" se confronta com o ódio que lhe cerca. Contaminado, termina por fazer girar a engrenagem de desgraças que destrambelha planos alheios. Em "Meu Tio" o olhar se volta a um tipo miliciano que, montado em sua SUV, acha que poder e dinheiro vivo lhe dão permissão para fazer o que tem vontade, corromper tudo ao seu redor.

"Os Primos de Campos" traz o racismo, a desigualdade, a violência, o futuro chacinado num Brasil que não vale a pena insistir, que merece ser deixado para trás - e há também o futebol com ares de Sérgio Sant'Anna. "Cida", conto sobre uma mulher que vaga pelas ruas do Leblon e cria fantasias com um lugar chamado Labosta, faz lembrar os grandes achados de Eliane Brum no precioso "A Vida que Ninguém Vê" (Arquipélago).

Anos de Chumbo - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Chega a ser clichê afirmar que o Rio de Janeiro é cenário preferido de Chico, mas, paciência, é isso mesmo. Em "Copacabana", uma história com toques oníricos e perturbada por militar de sobrenome "Etchegoyen ou Etcheverría" invoca Pablo Neruda e Jorge Luis Borges, abrindo caminho para o já mencionado conto com Clarice. No misterioso "O Sítio", a fuga de dois recém-conhecidos para um lugar isolado, onde passariam algum tempo, talvez umas quatro ou cinco semanas, "pois tudo indicava que a peste estaria sob controle ainda naquele outono", temos uma das referências à pandemia de Covid-19.

Título que dá nome e encerra o volume, "Anos de Chumbo" talvez seja o conto mais interessante desse novo livro de Chico Buarque. Pelo olhar de uma criança que entramos na residência do homem que se "gabava de, em trinta anos de carreira militar, nunca ter se locupletado, nem um cigarro de subalterno jamais filou". O oficial exemplar chegava em casa e não titubeava ao sentar a porrada no filho e na mulher. Cercado por colegas e amigos menos confiáveis do que imagina, atuava nos porões com prisioneiros de uma guerra que nunca existiu. Se engana ou ignora sobremaneira o que se passa no Brasil quem acredita que o "Anos de Chumbo", apesar de seu desfecho, narra uma história que já passou, que já está resolvida.

Em contos que alternam entre a primeira e a terceira pessoa, Chico perde um pouco a mão aqui e ali. Em certos casos as histórias são mais longas do que o necessário e o ritmo acaba por ficar um pouco arrastado. Também há algumas derrapadas com a linguagem, especialmente quando o autor constrói a voz de personagens mais jovens.

Entre os leitores, decepções são possíveis. Chico é alguém permanentemente confrontado com seus momentos geniais. Muitos esperam sempre um artista superlativo, magistral a cada palavra levada ao público. Outros tantos, ainda mais após o processo de imbecilização que o país viveu, o veem como alguém a ser tapadamente achincalhado, negando os momentos sublimes de sua obra - e aqui vou além da literatura publicada em livros. "Anos de Chumbo" não se coloca em nenhum dos extremos da emocionada recepção buarquiana. Chico às vezes pode ser bom, e apenas bom, sem grandes deslumbres, como se mostra nesse volume de contos.

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