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OPINIÃO

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O contraste entre os mundos de Carolina de Jesus e Clarice Lispector

Exposições sobre Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector estão em cartaz em São Paulo - Arquivo
Exposições sobre Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector estão em cartaz em São Paulo Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

06/12/2021 04h00

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Duas exposições sobre grandes escritoras brasileiras estão em cartaz na unidade da avenida Paulista, em São Paulo, do Instituto Moreira Salles. "Carolina Maria de Jesus - Um Brasil para os Brasileiros" ficará por lá até o final de março do ano que vem. "Constelação Clarice" seguirá até fevereiro. São visitas que qualquer pessoa interessada em literatura deve cogitar fazer nessa época em que a vida costuma desacelerar - e enquanto a pandemia segue menos pegada do que num passado recente, apesar dos indícios sombrios que começam a pintar.

É clichê associar Carolina à palavra luta, mas paciência. Luta é uma das palavras que definem a mostra sobre a carreira da escritora. É uma luta que vem acompanhada de resiliência, criatividade e muito orgulho. A fome e a miséria que marcaram a vida e moldaram a escrita de Carolina estão presentes, claro, bem como os percalços enfrentados e os preconceitos sofridos para ser reconhecida como escritora.

"[...] parei para conversar com uma senhora que resside na esquina na rua Araguaia e mostrei-lhe a reportagem do Audálio e a reportagem do senhor Moacir górge no Diário. Ela admirou - Disse-me que ouviu dizer que escrevo mas, não acreditou pórque êles pensam que quem escreve e só as pessôas bem vistidas. Na minha opinião, escreve quem quer", lemos em um dos registros.

Ali também encontramos uma Carolina festejada, que, apesar dos atritos com o mercado editorial e os aparatos que o cercam, tornou-se célebre em determinado momento da carreira. As incursões em campos como o da música mostram uma mulher com talento artístico que ia um tanto além da literatura apresentada em livros como o duríssimo "Quarto de Despejo".

Parte da exposição sobre Carolina Maria de Jesus - RC - RC
Imagem: RC

Apesar de ser apenas uma outra face do mesmo país, o mundo da exposição sobre Clarice aparenta ser outro. As centenas de itens pessoais e associados à escritora têm o seu valor, mas o foco está mesmo na relação entre literatura e artes visuais. Pelos anos 70, Clarice se aventurou na pintura. Algumas de suas experiências aparecem logo no começo da mostra. Depois, ao longo de dois andares do IMS, fragmentos de textos consagrados da autora de "A Hora da Estrela" dialogam com quadros, fotografias, esculturas e outras criações de mulheres que se destacaram entre as décadas de 40 e 70, como Lygia Clark, Claudia Andujar e Djanira.

Numa nós temos o emaranhado de subjetividade que parte das reflexões, angústias e investigações filosóficas e existenciais que Clarice levou para títulos como "A Paixão Segundo G. H.". Noutra, esses elementos também estão presentes, mas acabam obliterados por questões urgentíssimas: a necessidade de se alimentar, de dar comida para os filhos, de viver num lugar seguro. A angústia de Carolina é a angústia da fome, da miséria, a angústia das trombadas, empurrões e rasteiras levadas enquanto batalhava pelo lugar digno no mundo.

A dica é que os visitantes façam o trajeto contrário ao construído neste texto. Comecem pela exposição de Clarice. Sigam, depois, para a de Carolina. O contraste entre esses mundos que existem dentro de um mesmo país (entre artistas que foram contemporâneas num mesmo país e tiveram suas obras recebidas e tratadas de forma muito distintas ao logo do tempo) ficará ainda mais gritante. Além disso, a apoteótica última sala de "Carolina Maria de Jesus - Um Brasil para os Brasileiros" me parece mesmo a melhor forma de encerrar o passeio.

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