Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A selvageria como entretenimento e o abismo como destino
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"Conheci muita gente boa nesse mundão, muita mesmo. Gente racional como você. Gente que dizia que estava do meu lado, que abraçaria minhas lutas, que me amava, que faria de tudo por mim, mas na hora do vamos ver nunca entraram na lama comigo. Não julgo essas pessoas, cada um sabe até onde pode ir, mas eu sempre me sujei e me queimei só, entende o que eu quero dizer ou preciso explicar melhor?"
Bruno Ribeiro já era um nome para se prestar atenção. O romance "Glitter" (Moinhos), seu terceiro livro, foi finalista do Prêmio Kindle, recebeu menção honrosa no Prêmio Mix Literário e, mais importante, colecionou elogios de bons leitores. "Como Usar um Pesadelo", volume de contos publicado em 2020 pela Caos & Letras, chegou como alternativa interessante para quem deseja conhecer o autor por meio das narrativas breves.
Naquele mesmo 2020, as atenções sobre o nome de Bruno ganharam outra dimensão. Com diferença de poucos meses, ele venceu duas distinções recém-surgidas, amparadas por casas importantes de nossa atual cena editorial e focadas em trabalhos inéditos: o Prêmio Todavia de Não Ficção e o Prêmio Machado Darkside, este na categoria Romance/Contos.
"Porco de Raça", reconhecido pelo Prêmio Machado, chegou há pouco em nossas livrarias (saiu pela Darkside, óbvio). Nele, o leitor acompanha um professor falido e perseguido pelos muitos desafetos que fez enquanto se enrolava pela vida. O personagem é filho de um pai que "gostava de ser o negro exemplar, de bater no peito que a meritocracia é a única possibilidade de um homem negro no Brasil". A mãe, por sua vez, é uma "preta frustrada, que terminou se encontrando no mundo da moda". Os dois "foram pisoteados, mas diziam por aí que nunca sofreram racismo". Tudo isso nas palavras do próprio protagonista, que nos conta a história.
A família de aparência respeitável, as pressões sociais e os tempos no colégio mais rico de João Pessoa foram decisivos para moldar a personalidade do homem em permanente conflito interno, que vive massacrado por regras e imposições alheias. Servindo de contraponto a esse personagem rebelde há o seu irmão, senador paraibano que soube seguir a cartilha do teatro social para alcançar a tal vitória na vida. Caricatural, vive rodeado de empregados brancos e ouve Vivaldi no café da manhã.
A questão racial é uma camada evidente desde as primeiras páginas da obra, quando, numa fuga em ritmo alucinante, o professor é ajudado por uma dondoca solícita que dirige uma Eco Sport, ouve Alok e dispara asneiras preconceituosas que se pretendem acolhedoras. Entre conflitos familiares, presepadas amorosas e mal-entendidos com gente perigosa, uma hora a vida do professor capota.
Ele se torna mais um "desses negros que somem diariamente nos noticiários, enquanto o repórter diz que o Brasil está exterminando a bandidagem com punhos de ferro". O que lhe aguarda, no entanto, não é a vala aberta pelo discurso legitimador de massacres vindo da gente de bem. O professor é capturado e levado para Buenos Aires, onde recebe uma máscara de porco, ganha um nome de guerra e, mantido em cativeiro, é forçado a lutar em rinhas humanas, numa espécie de UFC de mascarados com armas brancas liberadas.
Bruno Ribeiro não entrega ao leitor um livro de caminhos óbvios. Se há toda uma discussão sobre racismo, conjunturas sociais e construção de identidade em seu romance - que às vezes se explica demais, especialmente durante o terceiro capítulo -, há também porradaria, sangue e brutalidade numa história que passa por cidades como Rio de Janeiro, Três Corações e Hong Kong. É possível lembrar da tosca "Round 6" enquanto se lê "Porco de Raça", mas há paralelos mais dignos para se fazer com o trabalho do escritor.
Pelo menos uma sequência de tiros e bombas remete aos mais intensos jogos de ação. Dos ringues vem Maguila, responsável pela frase que serve de epígrafe a um dos capítulos: "A única coisa que me incomoda é falta de respeito. Se me desrespeitam, eu sento a mão na orelha mesmo". Entre o cinema e a escrita, há toques de "Clube da Luta", livro de Chuck Palahniuk que virou filme pelas mãos de David Fincher.
Na literatura, o poeta Cruz e Souza é uma referência óbvia e martelada ao longo da narrativa, que ainda carrega alusões a Kafka. O horror faz par com o que de melhor vem sendo produzido na literatura latino-americana contemporânea. Também há algo de Hunter Thompson no modo como o surrealismo pontua a história, especialmente após a passagem em que o professor se vê na seita de um picareta que usa a religião para estuprar, torturar e matar a própria família. Aliás, a combinação do texto de Bruno com as ilustrações do ótimo Wagner William ecoa a famosa parceria entre Thompson e Ralph Steadman.
"Porco de Raça" é um livro sobre os massacres da existência, sobre a vida que tem o abismo como destino. Sobre alguém que não se conforma com a obrigação de viver sempre sustentando uma máscara, alguém insatisfeito com a própria condição e em busca da verdadeira identidade. E é também um livro sobre o negócio do entretenimento, algo que as pessoas têm perseguido de forma sedenta, da mesma forma como zumbis procuram por cérebros. Um mercado que tudo captura, trucida, molda e transforma em produto para um público sempre pronto para delirar com qualquer babaquice ou selvageria.
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