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Bons momentos com jeitão de sobras: o livro póstumo de Anthony Bourdain

Anthony Bourdain, um dos autores de "Volta ao Mundo" - Andy Kropa/ Invision_AP
Anthony Bourdain, um dos autores de "Volta ao Mundo" Imagem: Andy Kropa/ Invision_AP

Colunista do UOL

14/02/2022 04h00Atualizada em 16/02/2022 10h55

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"Acho que Salvador em particular é um daqueles lugares para onde, independentemente de qualquer coisa, as pessoas devem ir. Até quem tem medo de viajar, até quem diz: 'Pois é, mas ouvi falar que...' Não! Sabe por quê? A vida existe para ser vivida, cara. Você não pode perder um lugar como este porque não existem muitos lugares no mundo que sequer cheguem perto. A Bahia é o coração do Brasil - o lugar de onde vem a magia - e para chegar lá basta seguir o som dos tambores. As coisas parecem balançar e se movimentar constantemente. É um lugar onde todo mundo é sensual".

São essas as impressões que Anthony Bourdain deixou sobre a capital baiana e que agora aparecem no livro "Volta ao Mundo - Um Guia Irreverente". Chef e caçador de experiências gastronômicas, Bourdain se transformou numa celebridade ao rodar pelo mundo para comer, beber, papear e gravar programas de televisão. Elogiado também pela escrita, deixou livros importantes sobre o assunto que lhe fez famoso, como "Cozinha Confidencial". Bourdain morreu em 2018, o que não impede que novidades sobre o seu trabalho sigam aparecendo.

"Volta do Mundo", lançado no Brasil pela Intrínseca (tradução de Livia de Almeida, ilustrações de Wesley Allsbrook) é uma dessas novidades. Nele, Laurie Woolever, ex-assistente de Bourdain, se apoia em fragmentos memorialísticos deixados pelo autor para tecer um guia turístico que passa por mais de 40 países. São impressões de Bourdain sobre lugares como Cuba, Líbano e Uruguai mescladas com informações mais frias escritas por Laurie. Relatos de amigos, parentes e colegas de Anthony completam o volume.

É um livro com um jeitão de sobras, isso é inegável. Com a quantidade enorme de informações e facilidades turísticas que encontramos pela internet, também não sei quão útil podem ser dados sobre hospedagens ou melhores maneiras de se deslocar pelas cidades. Em todo caso, são interessantes os registros deixados por Bourdain. Eles é que fazem com que "Volta do Mundo" (uma volta com atenção excessiva para alguns países óbvios e quase nada sobre outros) se mantenha de pé.

"Volta ao Mundo", livro póstumo de Anthony Bourdain - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Ainda em Salvador, entre caipirinhas e carajés, Bourdain faz um alerta sobre o azeite-de-dendê: "Leva algum tempo para se acostumar. A primeira vez que estive aqui foi assim: você come e caga sem parar durante horas. Mas, depois de se acostumar, sem problemas!". Preocupações gastro-escatológicas pontuam as andanças do autor. Da França que vem a ponderação sobre se entupir de fondue e pão: "Você vai ficar com uma grande bala de canhão de cocô alojada no rabo como se fosse a cabeça de um bebê. Sim, a coisa é do tamanho de uma maldita cabeça de bebê".

Reconhecido por recusar o discurso tacanho e covarde que busca separar comida (ou qualquer outro assunto) de política, um tanto da visão de mundo de Bourdain pode ser captada nas entrelinhas de suas memórias. Ao se referir ao Laos, por exemplo, lembra das consequências das mais de 500 mil missões aéreas que os Estados Unidos fizeram sobre o país asiático, enchendo o lugar inteiro de bombas - milhares delas ainda a explodir - supostamente em nome da liberdade, dos valores democráticos do Ocidente.

Em outro momento, ao olhar para o México, primeiro aponta que os restaurantes da maioria das cidades dos Estados Unidos simplesmente colapsariam se perdessem os trabalhadores mexicanos. Também faz uma série de elogios ao país latino: um lugar lindo, com praias deslumbrantes, diversidade natural, história fascinante, sítios arqueológicos incomparáveis e uma região vinícola que "compete com a Toscana em beleza". Daí, como estadunidense, questiona:

"Amamos as drogas mexicanas. Talvez não seja seu caso pessoal, mas 'nós', enquanto nação, com certeza consumimos quantidades titânicas delas - e fazemos de tudo para adquiri-las, gastando um bom dinheiro. Amamos a música mexicana, as praias mexicanas, a arquitetura mexicana, a decoração de interiores, os filmes mexicanos. Então por que não amamos o México?"

Quebras de paradigmas e bons conselhos podem ser pescados entre justas defesas de comidas como tripas, miolos e pulmões, recomendações para observar em quais barraquinhas os habitantes das cidades fazem fila para comer e alertas como não levar drogas para Cingapura ("Estou falando MUITO sério. Se trouxer qualquer coisa, um baseadinho que seja, você é facilmente a pessoa mais burra do mundo").

Em todo caso, faz bem não abandonar alguma desconfiança ao perambular pelas impressões de Bourdain. O deslumbramento com uma cerveja como a Guinness (boa, nada além disso) mostra que o marketing pode driblar até os críticos mais aguçados e afetar os paladares mais exigentes.

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