Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Refugiados, famílias separadas e as vidas estraçalhadas pela guerra
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Tão logo a guerra que a Rússia trava no território da Ucrânia estourou, começaram a chegar notícias de refugiados. Centenas, milhares, dezenas de milhares... Há quem já fale em milhões de pessoas procurando por novo abrigo após largarem tudo para tentar garantir a existência. São vítimas. E, dentre as vítimas, acompanhamos por meio das notícias, há quem se transforme em algoz para massacrar ainda mais quem já sofre com o horror, como os negros e africanos descriminados e passados para trás em fronteiras e postos de controle.
Se na semana passada indiquei alguns livros que ajudam a entender conflitos e tensões entre a Rússia e seus vizinhos, hoje penso em quem aposta na arte para compreender um pouco do que é o sofrimento daqueles que têm a vida arrebentada pela guerra. Sobre a saga de um refugiado, recordação imediata é a ótima "A Odisseia de Hakim", HQ do francês Fabien Toulmé dividida em três volumes publicados aqui no Brasil pela Nemo.
Na história acompanhamos o périplo de um jovem sírio para conseguir refúgio na Europa após a guerra bater à porta de seu trabalho e de sua antiga casa em Damasco. A oportunidade é boa para notar o contraste que há no tratamento dispensado por muitos países a refugiados europeus e a refugiados de outras partes do mundo. Já escrevi sobre "A Odisseia de Hakim" em e também entrevistei o Fabien, deixo aqui, aqui e aqui o caminho para esses conteúdos.
O modo como animosidades e descaso se instalam também entre as vítimas imediatas da estupidez bélica é um dos aspectos retratados em "A Espera", graphic novel da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim lançada no Brasil pela Pipoca & Nanquim (tradução de Yun Jung Im). Keum Suk é a mesma quadrinista de "Grama", livro sobre barbáries cometidas pelo exército japonês na guerra travada entre a China e o Japão a partir de 1937. "Grama" segue entre as minhas leituras mais marcantes dos últimos anos.
Em "A Espera" o terror é outro. A guerra da vez é a da Coreia e o foco está em Gwijá, senhora que, sete décadas após o conflito que dividiu a península em dois países, ainda aguarda pelo reencontro com familiares, dentre eles o filho perdido. Criada numa área bastante pobre da gelada Hamgyeong do Sul, hoje província norte-coreana, Gwijá cresceu lutando contra a fome (a cena que envolve seu cachorrinho é tristíssima) e vendo diferentes conflitos mudarem a história de diversas pessoas próximas.
Até que uma hora, já crescida, casada e com filhos, a vida de Gwijá se estraçalha por conta da guerra. Após deixar seu vilarejo, é na longa marcha de fuga que acaba por se separar de marido e filho. O que temos, então, é uma história pessoal duplamente despedaçada num curto espaço de tempo: o fim de uma vida construída em seu lugar no mundo e a ruptura familiar provocada não pela morte, mas pelo sumiço que deixa dúvidas: seguiriam vivas as pessoas amadas?
Há mais do que isso, bem mais. Em "A Espera", Kreum Suk leva para os quadrinhos muito das lutas de sua própria mãe e de outras pessoas que passaram a vida aguardando pelo momento - e brigando pelo direito - de reencontrar parentes separados na fragmentação coreana. É uma amostra de como a ignorância beligerante atormenta pessoas para sempre. Gente que passa a estar numa espera para algo que, se concretizado, jamais terá a mesma potência das memórias ou dos sonhos projetados junto àqueles nunca mais vistos.
Os tempos são outros. O mundo está mais conectado. Elos virtuais são possíveis mesmo com barreiras ou penhascos físicos intransponíveis. Mas isso não quer dizer que relações não serão feridas ou dizimadas junto com a guerra, qualquer guerra.
Ps: ainda sobre a guerra entre as Coreias, aproveito para lembrar da surpreendente "Memórias de um Freixo", de Kun-Woong Par, lançado no Brasil pela Conrad, outra HQ que merece atenção. Escrevi a respeito aqui.
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HQs citadas nesta coluna
"A Odisseia de Hakim" - Fabien Toulmé
"A Espera" - Keum Suk Gendry-Kim
"Memórias de um Freixo" - Kun-Woong Par
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