Topo

Página Cinco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O descaso com a leitura e o pontapé na ideia de construir um país

Pintura do século 14 que exala destruição. - Artista desconhecido/ Arquivo
Pintura do século 14 que exala destruição. Imagem: Artista desconhecido/ Arquivo

Colunista do UOL

16/03/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Não é porque só podemos esperar ataques contra a cultura vindos de quem hoje ocupa o governo federal que devemos normalizar o pontapé dado na ideia de tentar fazer disso daqui, de fato, um país.

Vejo os resultados da pesquisa "O Brasil que Lê", ação da PUC-Rio em conjunto com o Itaú Cultural e consultoria da JCastilho para mapear iniciativas de incentivo à leitura e formação de leitores pelo país. Dos 382 projetos registrados, 185 estão no sudeste, 75 no sul, 74 no nordeste, 34 no norte e apenas 14 no centro-oeste do país. São projetos liderados por mulheres na imensa maioria das vezes (74%) e que lidam com públicos bastante distintos: alunos, moradores de comunidades específicas, gente com deficiência, pacientes de hospitais, refugiados...

Esses agentes, que conversam com até 220 mil pessoas, têm um papel importante para despertar o interesse pela leitura, deixar o público mais íntimo dos livros. Se desejamos uma sociedade feita de bons leitores, como estipula a Constituição, valorizar esses projetos e trabalhar para que outras iniciativas semelhantes despontem em mais lugares precisaria ser algo elementar.

Daí começam os problemas. Além de não ganharem dinheiro algum, 39% das pessoas à frente dessas iniciativas tiram grana do próprio bolso para que as ações aconteçam. Quando precisam formar uma equipe, contam apenas com voluntários em 43,49% dos casos, remuneram profissionais em 31,58% e se ajeitam pagando uns aqui e contando com a camaradagem de outros ali em 24,93% das vezes.

Os recursos eventualmente levantados vêm de diferentes lugares. Uma força das comunidades atendidas, patrocínio de empresas privadas e verbas públicas são algumas das vias mais recorrentes. Isso quando há dinheiro diretamente envolvido e remuneração para quem trabalha, repito e enfatizo. Não é correto alguém trabalhar e receber em troca apenas aplausos e tapinhas nas costas, quando muito. A sustentação financeira deveria ser um pilar básico, inegociável, de qualquer iniciativa do tipo.

Digo deveria, e aqui voltamos ao que hoje está aí, à frente do país. Ao apurar os dados, os responsáveis pela "Brasil que Lê" estranharam a ausência de alguns projetos conhecidos. Quando procuraram os responsáveis por essas ações, descobriram que elas tinham definhado ou acabado. Segundo o consultor José Castilho, muitos alegaram que o paulatino abandono das políticas públicas por parte do governo federal desde 2016 inviabilizou ações para tentar fazer do Brasil um lugar com mais leitores. Nem por meio do Plano Nacional de Livro e da Leitura (PNLL), que tem o fomento à leitura e à mediação como eixo fundamental, medidas efetivas foram tomadas nos últimos anos. A partir de 2019, a situação se agravou ainda mais.

"À deriva, sem o PNLL funcionando desde seu início, com a Diretoria do Livro, Leitura e Literatura esvaziada e sem recursos na Secretaria da Cultura, a única conclusão que se pode tirar após quase quatro anos de governo é que os programas e projetos de livro, leitura, literatura e bibliotecas estão sendo deliberadamente sufocados pelos atuais governantes. Não obedecem à legislação vigente do setor, não dão seguimento e suporte a programas vencedores e não apresentam investimentos que se possam apurar pelo acesso aos veículos do Ministério do Turismo", diz Castilho.

"Aliás, se nada mais fosse evidência da tentativa de aniquilação da Cultura, incluir a política nacional de cultura de um país continental e com a diversidade cultural como o Brasil num ministério de turismo é mais do que suficiente para determinar a deliberada tentativa de destruição dos programas culturais do país, inclusive da leitura", complementa o consultor.

O descaso com a leitura é um símbolo do quanto ideias de país e de como construí-lo foram deixadas de lado. Não se poderia esperar algo diferente de indivíduos com tara pela destruição, mas nem por isso podemos normalizar um governo que não cumpre suas obrigações mais básicas.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.