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REPORTAGEM

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Lygia Fagundes Telles e a literatura como caminho para melhorar as pessoas

Lygia Fagundes Telles - Divulgação/Flima
Lygia Fagundes Telles Imagem: Divulgação/Flima

Colunista do UOL

03/04/2022 11h38

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"[A literatura] pode melhorar [as pessoas], sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura por meio do sonho. Eu tenho um impulso, que talvez seja um impulso cristão, pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo, verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. E o que eu faço, acredito, com o máximo de competência que me é possível e com amor, com paixão, acaba chegando, de algum modo, ao outro". Lygia Fagundes Telles deu esta declaração em depoimento concedido ao Cadernos de Literatura Brasileiras (CLB), do Instituto Moreira Salles, em edição que a homenageou. A escritora continuará podendo melhorar os outros, contudo, a partir de agora, exclusivamente por meio de sua obra.

Autora de grandes títulos da literatura brasileira, como os romances "Ciranda de Pedra" e "As Meninas", Lygia foi uma verdadeira colecionadora de prêmios. Dentre os muitos, destacam-se quatro Jabutis, mesmo número de vezes que levou o da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Em 2005, recebeu o Prêmio Camões, um dos mais importantes da literatura em língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra, pela qual também foi agraciada como Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB), em 2001. Muito antes disso, desde 24 de outubro 1985, já era a ocupante da cadeira número 16 da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Sobre seu trabalho, o crítico literário Antonio Cândido afirmou: "A obra de Lygia Fagundes Telles realiza a excelência dentro das maneiras estabelecidas de narrar. Mas ela sabe fecundá-las graças ao encanto com que compõe, à capacidade de aprender a realidade pelos aspectos mais inesperados, traduzindo-a de modo harmonioso".

Os elogios também são compartilhados por outro importante crítico brasileiro: "O híbrido é mais fascinante porque, diante do exame mais exigente do leitor, não o conduz à verdade do mundo, não o conduz à mentira dos seres fictícios. Lygia ensina que a intriga ficcional tem de ser engenhosamente derrapante na troca com o leitor. Ela é gesto de disponibilidade e de oferta. Se a intriga ficcional se entregar ao leitor exclusivamente como verdade ou exclusivamente como mentira, ela morre. Ao convidar o leitor a esquivar-se da verdade e da mentira, a narrativa híbrida de Lygia leva-o a perder o sentido da direção unívoca e a derrapar para a análise do corpo do narrador e dos personagens, para a leitura de sua pele", escreveu Silviano Santiago para o mesmo CLB.

Ciranda de Pedra

Lygia nasceu em São Paulo, em 19 de abril de 1923. Filha do advogado Durval de Azevedo Fagundes - homem que gostava de frequentar casas de jogos e que levava sua filha a esses ambientes crente de que ela lhe traria sorte na roleta - e da pianista Maria do Rosário de Azevedo, cresceu vivendo em cidades pequenas e médias do interior do seu estado natal. Adorava ouvir histórias, principalmente de terror. Antes mesmo de ser alfabetizada, já as contava e recriava, mudando as versões a cada vez que as revisitava. Quando aprendeu a escrever, julgou importante começar a registrá-las em seus cadernos.

De volta à capital paulista, em 1941 Lygia ingressou na Escola Superior de Educação Física. Depois entra na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde conheceu o jurista e professor Goffredo da Silva Telles Junior, com quem viria a se casar em 1950 e teria um filho, Goffredo Telles Neto. Mais tarde, Lygia se divorciaria e casaria com o ensaísta e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes, que falece em 1977.

Em 1938, a escritora publicou seu primeiro livro, "Porão e Sobrado", uma reunião de contos com edição bancada pelo pai. O segundo título, viria apenas em 1944: "Praia Viva", outra coleção de contos, este sim lançado por uma editora. Após a consagração literária, Lygia se indisporia (era essa a palavra que usava) com esses dois trabalhos. Argumentava que ficava aflita ao pensar que novas gerações de brasileiros leriam aqueles livros que, em sua opinião, não tinham importância. Gostaria que não perdessem o tempo com eles, mas sim com suas outras obras.

Essas outras obras vieram a partir de 1949, quando lançou "Cacto Vermelho", mais um livro de contos. Já em 1954, publicou o seu primeiro romance, "Ciranda de Pedra", um de seus trabalhos mais importantes. Em 1958, voltou aos contos com "Histórias do Desencontro", mesmo gênero de "Histórias Escolhidas", de 1964, "O jardim Selvagem", de 1965, e "Antes do Baile Verde", de 1970.

"Eu percebo que está começando a nascer um conto quando, ao analisar as personagens, vejo que elas são, de certo modo, limitadas. Elas têm que viver aquele instante com toda a força e vitalidade que eu puder dar, porque nenhuma delas vai durar. Isso quer dizer que, com elas, eu preciso seduzir o leitor num tempo mínimo. Eu não vou ter a noite inteira para isso, com uísque, caviar, entende? Preciso ser rápida, infalível. O conto é, portanto, uma forma arrebatadora de sedução. É como um condenado à morte, que precisa aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo", diria sobre o gênero.

As Meninas

Já na década de 70, após "Verão no Aquário", de 1964, lançou o seu terceiro romance, "As Meninas", outro trabalho fundamental. Com ele, mostra a sua recusa ao regime militar então vigente do país - Lygia foi uma militante do movimento contrário à censura. "Quado terminei 'As Meninas', comecei a chorar - é que tinha acabado ali uma convivência encantadora, que me fazia feliz. Ao terminar o livro, me senti solitária", declarou.

Voltou aos contos no próximo livro, "Seminário de Ratos", de 1977. É dele um dos textos que impressionou José Saramago. "Recentemente, estava eu a folhear alguns dos livros de Lygia Fagundes Telles que desde há muito me acompanham na vida, a afagar com os olhos páginas tantas vezes soberbas, quando me detive nessa verdadeira obra-prima que é o conto 'Pomba Enamorada'. Reli-o uma vez mais, palavra a palavra, sílaba a sílaba, saboreando ao de leve a pungente amargura daquele mel", disse o escritor português.

Em 1978, lançou "Filhos Pródigos", também de contos, que mais tarde seria rebatizado como "A Estrutura da Bolha de Sabão". No gênero, ainda lançaria "A Disciplina do Amor", "Mistérios", "A Noite Mais Escura e Mais Eu" - outro a arrebatar prêmios diversos - "Invenção e Memória", "Conspiração das Nuvens" e "Durante Aquele Estranho Chá" - essa também com textos memorialísticos.

Em 1989, dois anos antes de se aposentar como funcionária pública, lançou seu último romance, "As Horas Nuas". Também na declaração para o CLB, disse "Quando estou escrevendo um romance, eu tenho a impressão de que nunca fiz outra coisa na vida. Eu fico tão apaixonada pelo gênero que chego a achar que nunca mais vou escrever um conto. Os personagens de um romance exigem muito. A certa altura, eu chego a confundi-los com seres da vida real. Nesse ponto, eu e as personagens já formamos uma só matéria. Isso continua a ser um mistério para mim".

Influências

Lygia foi fã confessa de escritores consagrados como Edgar Allan Poe, James Joyce, Oscar Wilde, Henry James, D. H. Lawrence, Jorge Luis Borges, William Faulkner e Machado de Assis. Também gostava muito dos românticos brasileiros, de Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves e Gonçalves Dias. Lamentava-se, inicialmente, por dominar uma língua que julgava morta para o mundo, mas depois tomou consciência da importância de se escrever em português, no mesmo idioma de Camões, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Sempre que ia exercitar seu ofício, fazia questão de se preparar. Jamais sentava à mesa de camisola, estava sempre devidamente arrumada para o trabalho, de dentes escovados e banho tomado. Precisava honrar a sua profissão.

Assim que construiu sua eterna obra, sobre a qual o escritor Caio Fernando Abreu declarou: "A verdade é ambígua e escapa o tempo todo, parece dizer Lygia nas entrelinhas de tudo que escreve, centrado nesse conflito para sempre irresolvido entre mucos, ódios, nojos da matéria orgânica desprezível e a possibilidade do espírito. Maior riqueza seria impossível num escritor, suspenso sobre o abismo do fio esticado das palavras, também elas ambíguas".

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