Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Annie Ernaux e as marcas de um aborto clandestino
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"Voltei a pé para a cidade universitária. Na agenda, consta: 'Estou grávida. Que horror'". Mais adiante, lemos: "Eu matei minha mãe em mim naquele momento". É nesse instante, decisivo para que a protagonista e narradora tenha uma nova compreensão da maternidade, que a mulher de 23 anos começa a se ver, de fato, no mundo e como a grande responsável pelos seus rumos.
Não é segredo que a personagem de "O Acontecimento", livro da francesa Annie Ernaux recém-lançado pela Fósforo (tradução de Isadora de Araújo Pontes) conseguirá se livrar do embrião que começa a se desenvolver em seu útero. O que está em jogo na narrativa são os percalços para a realização do aborto e a maneira como ele segue a ecoar ao longo da vida dessa mulher.
A partir de um susto na década de 1980 que a protagonista - a própria Annie - visita seus diários para reconstruir aquele momento decisivo de sua juventude na década de 1960. Autoconfiança e descuido ameaçaram não só a liberdade sexual, mas também os horizontes possíveis de sua trajetória. É árdua a busca quase secreta por alguém que tope dar fim àquela gravidez indesejada. Entre médicos de ética questionável, colegas aloprados e "fazedoras de anjo", uma série de violências cruza o caminho da moça.
Se a personagem carrega a convicção de que "diante de uma carreira destruída, uma agulha de tricô na vagina não pesava muito", o aborto é uma certeza. A partir desse ponto, a dúvida passa a ser outra: se essa pessoa será amparada e terá a sua saúde garantida. Olhando décadas depois para aquele momento crítico, Annie registra: "Que o modo como vivi essa experiência do aborto - a clandestinidade - remonte a uma história superada não me parece um motivo para deixá-la enterrada".
É nesse ponto que "O Acontecimento" passa a soar especialmente incisivo para os leitores brasileiros. A França legalizou o aborto ainda na década de 1970, entre a experiência da autora e a escrita da obra. Do lado de cá do Atlântico, enquanto a pauta avança em outros países da América Latina, o Brasil segue estagnado ou retrocedendo em relação a esse direito das mulheres sobre o próprio corpo, assunto central da obra.
Sem condescendências ou frivolidades, com críticas e reflexões honestas (às vezes descoladas demais do restante do texto) e uma escrita tão rigorosa quanto ágil, a atenção e a preocupação de Annie com a linguagem é explícita. A narradora sabe quão horrorosa é uma frase como "os filhos do amor são sempre o mais bonitos".
Annie também mostra necessária sobriedade ao assumir a resistência ao lirismo da cólera ou da dor, sem transformar os escritos em gritos ou choros. "As coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações, meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros", crê.
Com 81 anos e frequentemente cotada ao Nobel de Literatura, Annie Ernaux é uma das maiores autoras da França. Em sua obra estão presentes muitos dos conflitos e mudanças sociais dos franceses ao longo da segunda metade do século 20 e início deste século. Flutuando entre a memória, a autobiografia e o romance, é difícil cravar em qual caixinha a escrita de Annie deve ser colocada - o que, definitivamente, não é um problema da artista. O mais comum é a escritora ser encarada como referência da autoficção. Uma autoficção que chuta pra longe a mera aporrinhação egoica e consegue conectar a história pessoal às grandes questões de seu tempo.
Com o resto da vida paralisada enquanto procura pela forma de realizar o aborto, em certo momento de "O Acontecimento" a protagonista se lembra de sua classe social. Vinda de uma família de operários do interior, era a primeira a cursar a universidade. "Nem o vestibular nem a graduação em Letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social", registra.
Impossível não pensar em "O Lugar" (Fósforo, tradução de Marília Garcia), mais um livro de Annie tão breve quanto extremamente potente, sobre os embates entre progressistas e tradicionalistas retratados a partir da relação da escritora com a sua família. É outro trabalho que nos faz refletir sobre muitos dos atritos que temos no Brasil de hoje, um país dividido entre pessoas com a cabeça no século 21 e outras profundamente enraizadas nas piores práticas e costumes de épocas pregressas.
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