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Samanta Schweblin: o horror cotidiano e as formas de assombrar o leitor

A escritora argentina Samanta Schweblin, autora de "Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias" - Suhrkamp Verlag
A escritora argentina Samanta Schweblin, autora de "Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias" Imagem: Suhrkamp Verlag

Colunista do UOL

18/04/2022 04h00

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Publicado pela primeira vez no Brasil em 2012, pela Benvirá, "Pássaros na Boca", da argentina Samanta Schweblin, transformou-se num livro tão admirado quanto raro de encontrar. Em sebos, exemplares custavam quase R$200. Nos contos da obra há muito do que se destacaria na ficção latino-americana ao longo da última década, especialmente a presença do insólito e do horror entranhado no cotidiano.

Desde então, Samanta, hoje com 44 anos, estabeleceu-se como uma das escritoras mais proeminentes da sua geração. "Distância de Resgate" (Record) foi finalista do International Booker Prize e ganhou adaptação para o cinema, onde virou "O Fio Invisível", disponível na Netflix. A tradução para o inglês do romance "Kentukis" (Fósforo), de 2018, também chegou à final da premiação britânica (escrevi sobre a obra aqui). Em listas de escritores para se prestar atenção, é comum encontrarmos o nome de Samanta, que já venceu o Juan Rulfo e o Casa de las Américas.

Agora, "Pássaros na Boca" ganha uma nova edição brasileira, num volume que traz ainda outro livro de contos da autora até então inédito por aqui: "Sete Casas Vazias", lançado originalmente em 2015. Com tradução de Joca Reiners Terron, a reunião de histórias breves sai pela Fósforo.

Samanta falou sobre a relação com esses contos antigos na entrevista que concedeu para a Página Cinco. A partir de um deles, comentou sobre os limites éticos da literatura, uma arte que está "aí para perguntar, para interpelar, para voltar a pensar o que já se dava como certo". O poder da arte foi outro assunto da troca de mensagens. A autora lembra que a literatura tem uma função que vai além de elencar ou expor informações. Ela tem o trabalho "de fazer com que o leitor suspeite do horror de uma realidade que antes nunca havia levado a sério".

O horror tão presente em romances e contos recentes deste nosso canto do mundo também fez parte da conversa. Para Samanta, aliás, estranho seria se esse momento não existisse. "Viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de 500 anos. E o pior é que normalizamos grande parte disso tudo. Do que mais escreveríamos se não a partir do insólito e do horror?".

Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias, de Samanta Schweblin. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Você publicou "Pássaros na Boca" em 2009 e "Sete Casas Vazias" em 2015, dois livros agora reunidos em um único volume aqui no Brasil. Como avalia esses contos hoje, quase 15 anos após escrever os primeiros e mais de meia década depois de escrever os seguintes?

Há distância e, ao mesmo tempo, proximidade. Muitos contos seguiram crescendo para além dos livros, porque ganharam prêmios, foram publicados em revistas ou adaptados para o cinema. Então, são histórias que tenho mais em mente, porque às vezes é preciso relê-las para as traduções ou revisitar para as adaptações, como "Um Homem Sem Sorte" ou "Matar um Cão", que, acredito, são os contos que mais tiveram vida própria.

E há outros que sinto mais distantes, contos que não revisitei após a publicação. Depois de 15 anos, reli "A Medida das Coisas" quando o publicaram na New Yorker e, sinceramente, já não me senti cômoda com ele. Pensava: "hoje o escreveria tão diferente". Falei com a minha editora para pedir que, por favor, publicassem outro, não justamente esse, mas não houve modo de convencê-los. Ou seja, é uma distância que às vezes pode causar incômodo. Mas, bem, talvez seja melhor assim, significa que existe uma mudança na minha maneira de pensar a literatura. Só espero que seja para melhor.

O insólito e o horror bastante relacionado ao cotidiano são elementos presentes nesses contos e também grandes marcas da literatura latino-americana produzida na última década. Por que a escolha por esses caminhos para a sua escrita? E faz ideia de quais motivos levam tantas escritoras, principalmente, deste canto do mundo a produzir uma literatura com essas características?

Não sei se é uma escolha. O insólito e o horror são dois mundos que sempre me atraíram como leitora. Lembro dos meus 13 anos, quando chegaram às minhas mãos os primeiros livros de ficção para adultos, como "Bestiário", de Kafka, ou os contos de Ray Bradbury ou de Julio Cortázar. Me atraía como leitora qualquer situação que percebia como impossível de acontecer, mas absolutamente inesperada. E também o medo. Quando um livro me fazia sentir medo, medo de verdade, ganhava uma atenção absoluta, e me encantava esse estado de concentração total, de entrega. Suponho que há algo disso que tento reproduzir quando escrevo.

Respeito a sua pergunta, não sou teórica nem acadêmica, não sinto que tenha ferramentas sérias para entender esse fenômeno. Além disso, sou parte dele, então tampouco tenho perspectiva para analisá-lo. Só diria, a partir da minha ótica, que viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de 500 anos. E o pior é que normalizamos grande parte disso tudo. Do que mais escreveríamos se não a partir do insólito e do horror?

A escritora argentina Samanta Schweblin. - Suhrkamp Verlag - Suhrkamp Verlag
Imagem: Suhrkamp Verlag

"A Pesada Mala de Benavides", um dos meus contos favoritos, carrega uma discussão sobre o limite ou o conflito entre ética e estética dentro da arte. Na literatura, qual é o limite ético que não pode ser ultrapassado?

Bom, um exercício que fazemos todos, como escritores e como leitores, é jogar justamente com esses limites. Repensá-los, senti-los no próprio corpo, colocá-los em xeque, creio que é uma das grandes funções da literatura, porque é um espaço onde temos toda a liberdade para prová-los. Então, talvez um limite ético como autor seria a consciência de que não temos verdade nenhuma sobre esses limites. A literatura não pode vir a dizer "isso é assim, e isso não". A literatura tem que estar aí para perguntar, para interpelar, para voltar a pensar o que já se dava como certo.

Em outubro do ano passado você publicou um artigo muito bonito no "La Nacion" contando como o seu avô, que era artista, foi decisivo na sua formação como escritora. Em alguns momentos, sua literatura dialoga com as artes plásticas, como no próprio "A Pesada Mala de Benavides". Quão próximos universos como o da pintura ou da escultura podem estar do mundo da literatura?

Na minha formação, estiveram muito próximos. Não só por tudo o que contei naquele artigo, mas também porque assisti durante muitos anos, desde dos meus oito até os 13, a essa oficina de gravura e água-forte que recebia artistas plásticos de toda a América Latina. Eu estava ali, como dizemos nós, argentinos, "de prestado", quero dizer, era a "neta do professor", a mimada, e a única garotinha. Era um mundo absolutamente adulto. Mas por isso mesmo me maravilhava e eu o levava tão a sério.

As técnicas de gravura exigem horas, dias, meses de trabalho. É preciso trabalhar com chapas de zinco, com ácidos tóxicos, com resinas. Tudo implica uma quantidade de força de vontade e de mão de obra - muito distante de tudo relacionado com "o poético", "a inspiração", "as musas". É um trabalho real, quase de alvenaria (que era o trabalho do pai do meu avô).

Isso me deu ferramentas fundamentais para sentar seriamente para escrever. Ferramentas daquelas pouco faladas nos espaços literários: administrar a ansiedade e a frustração, trabalhar a paciência, desinflar os egos, entender que, mais do que genialidade, o que somamos quando chegamos a um bom resultado são horas de trabalho, conselhos de gente de confiança, distância do material e obstinação pelo que gostamos. Devo muito a esses anos de trabalho com artistas plásticos. E, acredito, me fascina voltar ao mundo artístico a partir da ficção por causa da nostalgia que permanece desses anos.

Você flutua muito bem entre os contos, o romance mais breve, no caso de "Distância de Resgate", e o romance mais longo, como demonstrou com "Kentukis". Quanto que o tamanho de uma história é decidido antes mesmo dela ser contada e quanto que a escrita dessa história, de certa forma, impõe a extensão que ela terá?

Geralmente as ideias já me chegam com um monte de pistas sobre essas coisas. Não lembro qual escritor dizia que, por menor que seja uma ideia, deve se olhar para ela com verdadeira atenção, pois contém todas as pistas que alguém necessita para saber contá-la. Mas respeito a sua extensão em particular. Para mim, qualquer ideia é, a princípio, para um conto. Eu gosto das formas breves, e sempre que posso contar uma história com a intensidade encapsulada em dez, vinte páginas, faço dessa maneira. Portanto, meus romances sempre são o fracasso de um bom conto. Um conto que começou como conto, mas fracassou. No lugar de conseguir ser contado em poucas páginas, precisou de 200 páginas a mais.

Samanta Schweblin - Suhrkamp Verlag - Suhrkamp Verlag
Imagem: Suhrkamp Verlag

Recentemente ouvi uma entrevista sua para o programa Vidas Prestadas, da Hinde Pomeraniec. Na conversa, você comentava como fez muitas pesquisas sobre agrotóxicos enquanto trabalhava no "Distância de Resgate". Na hora de escrever o romance, esse material lhe serviu de base, no entanto não aparece de forma explícita no texto. Para quem escreve, quão importante é ter noção do que deve permanecer oculto, nos bastidores, e o que deve de fato entrar na literatura?

A literatura não pode impor informação. Para isso há os diários, o ensaio, a teoria. A literatura pega o emocional do leitor e o coloca à prova. É um jogo com o outro. E para que esse jogo aconteça, é necessário calcular não só a parte em que o escritor faz os seus movimentos, mas também gerar no texto o espaço em que o leitor responde a essa coreografia.

Em "Distância de Resgate", por exemplo, minha pesquisa me fez entender o horror dos números de mortes e doenças provocadas pelas fumigações indiscriminadas nos campos de soja. Me vi, inclusive, lendo nomes de muita gente responsável que deveria ser acusada. Era muito tentador colocar isso no romance. Mas o romance pode dar algo que uma notícia ou uma investigação não pode: colocar o corpo do leitor em um estado emocional de absoluto terror. Pode fazê-lo sentir em seu próprio corpo o veneno, a responsabilidade de entender. Às vezes isso pode ser mais importante do que a informação.

No caso de "Distância de Resgate", para que isso funcione perfeitamente, precisava sacrificar a informação. Mas a informação está ao alcance de qualquer um que se sente à frente do computador e procure no Google por "Há glifosato no meu corpo se vivo na cidade e me alimento corretamente?". A literatura tem um trabalho mais complicado que o de expor a informação: o de fazer com que o leitor suspeite do horror de uma realidade que antes nunca havia levado a sério.

Nesse sentido, o que é fundamental para se contar uma boa história? E, por outro lado, o que pode arruinar uma grande história?

Não sei se há uma regra para as boas histórias. Cada história tem suas próprias necessidade e há muito o que se pensar em cada texto: o narrador, o ritmo, o argumento, os personagens, a conexão emocional com o leitor, a maneira como determinadas situações ou palavras se refletem nas vivências do leitor e voltam como poderosos símbolos ou espelhos. E isso só para falar do mais óbvio.

Mas em meus quase vinte anos de experiência escrevendo meus próprios textos e ensinando escrita criativa, aprendi sim uma coisa: e, ainda que tenha aprendido, às vezes volto a cair na mesma armadilha. Para escrever bem é necessário apagar o ego. Se está bloqueado, o problema é o ego. Se não se conecta com nada que te interesse, o problema é o ego. Mas, sobretudo, é preciso apagar o ego para deixar que flua a grande história que podemos ter entre as mãos, no lugar dessa que temos tanta certeza que queremos contar.

Somos nosso próprio lugar-comum, e com o ego inflado só temos pretensões: quero que o texto diga isso e faça isso, quero que o leitor pense isso e aquilo. Quero falar desse e desse outro... Um texto nunca funciona obedecendo necessidades do escritor. Mas se o escritor obedece as necessidades de uma história, tudo caminha muito melhor.

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