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Ciência que salva e mata: o 'fenômeno literário' da vez merece atenção?
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"O jardineiro noturno me disse que o homem que inventou os fertilizantes de nitrogênio modernos - um químico alemão chamado Fritz Haber - também foi o primeiro a criar uma arma de destruição em massa, a saber, cloro gasoso, que despejou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Seu gás verde matou milhares e fez incontáveis soldados sentirem suas gargantas arranhar, ao mesmo tempo que o veneno fervia dentro de seus pulmões, afogando-os em seu próprio vômito e catarro, enquanto seu fertilizante, coletado do nitrogênio presente no próprio ar, salvou centenas de milhões da fome e alimentou nossa superpopulação atual".
Agora é Banjamín Labatut, que nasceu na Holanda em 1980 e vive no Chile desde os 14 anos, o escritor apresentado aos leitores brasileiros como o fenômeno literário. De tempos em tempos a artimanha marqueteira se repete: pegam um autor com marcas razoáveis e tascam nele o rótulo de fenômeno. Aconteceu algo semelhante com Geovani Martins e Kristen Roupenian, só para citar dois exemplos. Acredita quem quer ou quem ignora que etiquetas do tipo dizem tanto sobre as virtudes literárias de alguém quanto um selo de best-seller do New York Times ou qualquer outro papinho comercial do tipo.
O que teoricamente serviria de base para o rótulo de Labatut é ter sido publicado em duas dezenas de países, ter chegado à final do International Booker Prize de 2021 e ter recebido um afago intelectual de Barack Obama, ocasionalmente alçado ao patamar de referência na crítica ou na curadoria de livros, filmes e séries. Além disso, autor do sul global sendo aplaudido por estadunidenses e europeus, como é o caso de Labatut, sempre garante um ar de alguém para se incensar.
Não fosse confrontado com a excepcionalidade alardeada, Labatut impressionaria ainda mais com o seu "Quando Deixamos de Entender o Mundo" (Todavia, tradução de Paloma Vidal). Livro de contos com pegada ensaística que ecoa nomes como Nate DiMeo e, talvez, Enrique Vila-Matas, o trabalho do chileno é mesmo bom. Ao longo de cinco narrativas - quatro de fato breves, outra que ocupa quase metade das 176 páginas do volume -, o autor mescla informações factuais com ficção.
Numa costura de vida íntima com trajetória profissional, narra a história de sabedoria, audácia, inquietação e turbulência de grandes pesquisadores que mudaram rumos da ciência e da humanidade ao longo do século 20, principalmente. São contos conectados, nos quais a destruição e a iminência do apocalipse aparecem de forma cíclica. Pelas páginas de Labatut desfilam de forma intricada o normal e o excepcional, a genialidade e a loucura, o belo e o grotesco, o conhecimento e a ruína, a megalomania que faz a ciência avançar e a nossa insignificância perante o universo.
Nomes como Albert Einstein, Werner Heisenberg e Erwin Schroedinger habitam as narrativas protagonizadas por viciados que tomavam mais de cem analgésicos por dia, matemáticos bitolados que viviam para números, fórmulas e teorias, intelectuais dispostos a desmontar o conceito de realidade, gênios tragados pela própria cabeça... É admirável a coleção de personagens talhados por um olhar atento aos pormenores, que consegue lidar bem com a tensão que sustenta o livro: o limite tênue entre caminhos que podem levar a lugares nunca antes explorados ou a um enorme precipício. Ou ambos, em certos casos.
A maneira como a expansão do conhecimento está profundamente ligada com formas mais sofisticadas de provocar grandes mortandades e sofrimento é um ponto crucial que permeia todo o trabalho. Não por acaso, numa obra sobre histórias de cientistas, as guerras e a morte aparecem nos contos de forma crucial. Nas narrativas de Labatut, a busca pela ruptura de barreiras científicas massacram os próprios cientistas. No extremo, são os segredos microscópicos que acabam por se voltar contra os homens, ameaçados por uma iminente reviravolta em que acabaremos esmagados pela natureza que tentamos compreender e subjugar.
"Hoje ninguém tem tempo para a eternidade. Só as crianças, só as crianças e os bêbados, mas não as pessoas sérias como o senhor, professor, os que estão prestes a mudar o mundo. Ou estou enganado?", lemos num dos muitos bons momentos de "Quando Deixamos de Entender o Mundo". Por outro lado, Labatut cai num erro que anda atazanando a literatura contemporânea: a preocupação em explicar demais o próprio livro. Está ali, no final do último conto, as linhas em que busca garantir que o leitor entendeu o que até então havia demonstrado com suas histórias.
Fenômeno literário? Deixemos essa bobagem para lá. Com estilo bem definido e olhar original, Labatut é um autor para se prestar atenção. "Quando Deixamos de Entender o Mundo" é uma leitura que vale ser feita. É isso o que realmente importa.
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