Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O encontro da leitura e da literatura com a corrida de rua
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Há algo de literário na corrida de rua.
Comida, cerveja e vinho para tentar não desgraçar a cabeça. Acabou que a pandemia não foi gentil com meu corpo. Paciência. Se antes jogava bola duas vezes por semana e corria outras tantas, depois de um ano e meio entre biblioteca, quarto e sala de casa o preparo físico razoável tinha virado só uma boa lembrança. Depois da segunda dose da vacina, já no final de 2021, a tentativa de voltar a algo próximo do ritmo anterior. Logo veio a clássica lesão muscular, tratada com mais cerveja. Os exercícios só começaram a engrenar mesmo há alguns meses.
Havia duas metas claras na minha cabeça: jogar bola sem a iminência de se machucar e ir de novo longe na corrida de rua. Se velocidade nunca foi o forte, pelo menos a resistência para distâncias mais ou menos longas existia. Depois de alguns testes, no final de março que decidi: tentaria encarar novamente os 21 quilômetros e alguns metros de uma meia-maratona.
Treino de tiro num dia, treino de ritmo em outro, treinos longos progressivamente maiores, pernas começando a dar boas respostas, pulmão voltando a segurar um pouco a bronca... Rolou! Desafio cumprido na Asics Golden Run no dia 15 de maio. O tempo? Pouco importa. A meta era mesmo dar conta da distância, e isso está feito. Uma pena que feito numa prova cheia de problemas. A caótica organização da largada descambou num atraso de mais de meia hora para o início de uma corrida com estrutura de apoio ao longo do percurso bem capenga.
Mas dizia que há algo de literário nas corridas de rua. Pois é. Quem me acompanha há mais tempo sabe que livros como "Correr - O Exercício, A Cidade e o Desafio da Maratona", de Drauzio Varella (Companhia das Letras) e "Boston - A Mais Longa das Maratonas", de Sérgio Xavier Filho (Arquipélago) cruzam a minha história de corredor. Da ficção, a referência ao esporte em "Divórcio", romance de Ricardo Lísias (Alfaguara), também deixou marcas. As experiências de autores como Haruki Murakami e Joyce Carol Oates com as pernadas nas ruas ainda estão para ser exploradas por aqui.
Quando digo que há algo de literário nessas passadas, no entanto, penso mais em forma do que em conteúdo. Diferentes distâncias da corrida talvez se pareçam com os diferentes formatos da prosa. Os ligeiros 5km são como a leitura de um conto, feita numa sentada. Os interessantes 10km soam como uma novela que exige um tempinho um pouco maior. Com os 15km, distância pouco tradicional mas ótima para servir de estágio para metas mais ambiciosas, entramos no campo do romance.
Eu diria que correr os 21km de uma meia-maratona é como ler um romance grande, daqueles com 350, 400 páginas. Ambos exigem vontade, dedicação para que se crie certa intimidade, compreensão de que nem todo prazer vem de maneira fácil, planejamento para que a leitura ou a corrida sejam feitas com frequência, sem ficarem perdidas - e fatalmente esquecidas - no caos cotidiano. Outro ponto de contato: corrida dessa dimensão mal feita e longo romance mal escrito são grandes martírios.
Daí para frente nós temos variações da mesma lógica. Os 42km da maratona são os famosos tijolos, aqueles romanções com 700, 800 páginas. São os que vêm à cabeça quando pensamos em grandes esforços literários ou atléticos. Há marcas maiores, em todo caso. As mais de 1200 páginas de um "Guerra e Paz" da vida casam-se aqui com as variadas distâncias das ultramaratonas. A Caminhos de Rosa, por exemplo, inspirada na obra de Guimarães Rosa, tem trajetos de 68km, 95km, 172km e até 252km dentre suas possibilidades. Sim, como na leitura de Tolstói, você não percorre tudo isso num só dia.
Outro ponto em que a literatura e a corrida de rua se cruzam: quando você termina uma prova ou livro, imediatamente já começa a pensar em qual será a próxima história para ler ou escrever com as pernas.
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