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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fábula política para crianças nos faz pensar: por que ratos votam em gatos?

Cena de Ratolândia, de Alice Méricourt e Ma Sanjin. - Divulgação
Cena de Ratolândia, de Alice Méricourt e Ma Sanjin. Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

01/06/2022 04h00

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Não curto livros infantis abobalhados, que subestimam a inteligência das crianças. "Sagatrissuinorana", de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz (Ôzé), Livro do Ano do Jabuti de 2021, é um bom exemplo do que agrada. Na história, os autores fazem um bem bolado de "3 Porquinhos" com "Sagarana", de Guimarães Rosa, para construir uma narrativa a respeito de desastres ambientais provocados pela mineração desenfreada. Há outras referências para o meu gosto, claro. Recordo-me da Coleção Antiprincesas publicada pela Sur Livros, que levou às crianças biografias de mulheres como Frida Kahlo, Clarice Lispector e Violeta Parra.

Da tríade de infantis de María José Ferrada que saiu no Brasil em 2020, o que mais me impressionou foi o duro e sensível "Crianças", feito em parceira com a ilustradora Maria Elena Valdez (Pallas Mini). Na obra, o leitor encontra poemas breves que imaginam bons momentos para pequenos assassinados pelo exército chileno durante a ditadura de Pinochet. Também com boa carga política, "O Capital Para Crianças", dos catalães Joan Riera e Liliana Fortuny, lançado no Brasil pela Boitatá, apresenta Karl Marx como o vovô Carlos, que adapta conceitos e ideias de "O Capital" para uma linguagem acessível aos seus netinhos.

"Ratolândia", escrito pela francesa Alice Méricourt, ilustrado pelo chinês Ma Sanjin e inspirado num discurso do ativista social canadense Tommy Douglas, segue toada semelhante. Com tradução de Leticia de Castro, a obra saiu há pouco no Brasil pela Oh!, selo infantojuvenil da editora Veneta. Na história, o leitor é levado a uma nação onde os ratos elegem seus representantes a cada cinco anos.

Ratolândia, de Alice Méricourt e Ma Sanjin. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Um fenômeno curioso acontece no país: quinquênio a quinquênio, os roedores vão às urnas e acabam elegendo sempre os gatos, seus predadores. Sem surpresas, as mudanças políticas acabam por piorar a vida dos ratos, maioria no lugar, e facilitar o dia a dia dos felinos, os donos do poder. Não era incomum a aprovação de leis que proibissem os ratos de correr rápido demais ou que estipulassem tocas com a entrada grande o suficiente para caber a mão de um gato.

O esmagar dos direitos da maior parte dos cidadãos e a aposta em soluções que não mexem na base estrutural do poder fazem, é evidente, nos lembrar do Brasil. Leis trabalhistas? Pra quê!? Só negociar com o patrão... Em tempos de orçamento secreto, ataques à educação, fortalecimento da bancada que apoia a transformação do país num imenso pasto e parque de diversões de garimpeiros e centrão funcionando como executivo paralelo, é preciso prestar mais atenção nos gatos eleitos para o legislativo — tudo isso sem esquecer da hiena que ainda nos desgoverna.

No final de "Ratolândia", outro momento que permite uma conexão rápida da história com a realidade brasileira, por mais que a máxima já exista há décadas: "Lembre-se, você pode até prender um rato ou uma pessoa, mas não pode prender uma ideia". Não é fácil, não é tranquilo, não é com sorrisos e aplausos que propostas para romper com o paradigma são recebidas, mas uma hora, a partir da insatisfação, da indignação e da organização dos ratos, as coisas começam a mudar.

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