Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Guerras e sonhos marcam romance de Gurnah, o último Nobel de Literatura
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"Por isso eu estou aqui - para tomar posse do que é nosso por direito, por sermos mais fortes. Nós estamos lidando com um povo atrasado e selvagem e a única forma de dominá-lo é incutir terror nas pessoas e em seus inúteis sultões de Liliputmajestät e produzir obediência na base da pancada. A Schutztruppe é o nosso instrumento. Vocês também são. Queremos vocês disciplinados, obedientes e cruéis muito mais do que imaginam. [...] Só que... você não é um deles. Você treme e olha e ouve cada batida do coração como se tudo isso te atormentasse. Eu te observo desde o começo, quando te trouxeram aqui pela primeira vez. Você é um sonhador".
Quer pegar o livro de um Nobel de Literatura e caminhar pela obra procurando pelos elementos que justificariam ou desabonariam o prêmio? Vai lá! Mas aviso: é cilada. A expectativa criada nesse tipo de abordagem é a chave ideal para pensar que quase nenhum autor vivo ou morto merece a distinção. Convém ir de cabeça aberta para a obra, disposto a compreendê-la e também a desprezá-la, se for o caso, sem dar tanta bola para a pesada luz projetada pela Academia Sueca.
Em outubro do ano passado, quando anunciaram o Nobel para o romancista Abdulrazak Gurnah, lembrei que a graça do prêmio não é apenas ratificar a qualidade daquilo que já admiramos ou criar controvérsias se o eleito nos desagrada. A medalha também cria oportunidades para conhecermos autores dignos de atenção e que passavam longe do nosso radar. Quase ninguém no Brasil conhecia o escritor que nasceu em 1948 em Zanzibar, na Tanzânia, país africano banhado pelo Oceano Índico. Na década de 1960, Gurnah se refugiou no Reino Unido para escapar da perseguição aos árabes durante a Revolução de Zanzibar. Seguiu na Europa como professor, fez carreira na Universidade de Kent.
De certa forma, com problemas e períodos distintos, os conflitos que moldam a trajetória do escritor também se destacam em "Sobrevidas", romance de 2020, o mais recente de Gurnah, lançado agora no Brasil pela Companhia das Letras (tradução de Caetano W. Galindo). Com a obra, o autor estreia em nossas livrarias.
As guerras entre invasores numa África retalhada por europeus engendram a narrativa que se inicia no começo do século 20 e se estende por décadas, até a Segunda Guerra Mundial. Os conflitos entre alemães e ingleses no território africano, a selvageria daqueles que se diziam civilizados, mudam drasticamente o caminho de povos que já viviam tendo que lidar com suas confluências, diferenças e tensões. O horror da guerra apresenta novidades ao mesmo tempo em que destrói parte daquela sociedade que habitava o atual território tanzaniano.
O foco alterna entre diferentes momentos da vida de gente como Khalifa, que arruma um emprego por conhecer o alfabeto latino, Ilyas, raptado por um soldado das tropas coloniais e enviado por um alemão para uma escola religiosa, e Hamza, que após anos de guerra busca por formas de refazer a vida. São personagens memoráveis que Gurnah nos entrega numa história bem cadenciada, construída com a profundidade muitas vezes necessária para se criar laços duradouros com os leitores. "Sobrevidas" é daqueles romances envolventes e comoventes, capazes de nos fazer desacelerar o ritmo para prolongar o prazer da leitura.
Há algo do Ryszard Kapuscinski de "Ébano" na forma como famílias se perdem e se reencontram na imensidão africana. Há algo também de Buchi Emecheta no modo como singularidades de diferentes regiões da África são apresentadas, bem como as vidas e culturas atropeladas, trucidadas e moldadas pelos ataques de europeus nos séculos 19 e 20. É entre as guerras e apesar do horror que muitas vidas encontram o seu rumo, encontram uma vereda para seguir em meio ao mosaico de violências.
Não é por acaso que, em diferentes momentos, personagens centrais de "Sobrevidas" são acusados de "sonhadores". Numa narrativa também temperada com solidariedade e amizade, o estudo, a escrita e a leitura (incômodos para brucutus com algum poder em mãos) aparecem como elementos decisivos para reconstruir e reconectar vidas. A literatura como meio de sensibilização e ponte para diálogos possíveis marca um romance sobre a multiplicidade do horror, mas também sobre sonhos, sobre gente que luta para resgatar, traçar e contar as suas histórias.
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