Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Em Escravidão, de Laurentino Gomes, leitor encontra Brasil que se repete
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"Os fazendeiros passaram a se organizar em clubes e centros de lavoura. Formaram clubes secretos e milícias particulares, dispostos, se fosse o caso, a defender pelas armas os seus interesses e propriedades. Em muitas localidades, líderes abolicionistas foram perseguidos, e juízes e advogados, expulsos. Fazendeiros e seus jagunços atacaram jornalistas e intelectuais que ousaram se pronunciar a favor da causa dos escravos", lemos logo na introdução. Poucas páginas depois, outro trecho que merece destaque:
"Dois brasis com visões diametralmente opostas em relação ao futuro se confrontavam naqueles memoráveis e tensos dez dias de maio. De um lado, havia os que sonhavam com uma nação livre do cativeiro, em que nenhum homem ou mulher jamais voltasse a ser vendido em leilões em praça pública, tratado como mercadoria qualquer, em que a lei do chicote deixasse de mediar as relações entre um grupo de brasileiros e outro, em que ninguém fosse discriminado devido à cor da pele ou à origem étnica. De outro, uma aristocracia rural predatória e escravista, que nos quatro séculos anteriores construíra seu poder e sua fortuna pelo uso da violência e da exploração indigna do trabalho alheio, sem nenhum reconhecimento ou contrapartida".
Ler "Escravidão - Da Independência do Brasil à Lei Áurea" (Globo Livros), terceiro e último volume do trabalho de Laurentino Gomes sobre os séculos de trabalho escravo no Brasil, é olhar para o passado e se deparar com muito do país de hoje. Não é incomum rever a história e encontrar paralelos possíveis com o presente. Ainda assim, causa certo estupor constatar como raízes de conflitos e tensões de quase duzentos anos atrás permanecem bem firmes no solo de nossa sociedade. Até militares de olho na chance de dar golpes estão nas páginas de Laurentino.
Jornalista famoso por livros como "1808" e "1822", o autor dedicou os últimos anos a repassar parte da história do Brasil ao longo de três séculos e meio, do primeiro leilão de escravizados até os dias seguintes à Lei Áurea. No terceiro volume da trilogia, mais do formato que o consagrou: informações retiradas de documentos, cartas e trabalhos de historiadores se misturam a análises de obras artísticas, viagens e dados contemporâneos. Numa série de quase 1800 páginas, compreensível que em certos momentos Laurentino retome informações para situar leitores; a prática, por outro lado, desgasta o texto.
Habitam a história personagens amplamente conhecidos (Princesa Isabel está lá, óbvio) e outros pouco lembrados em conversas sobre o assunto. Um deles é Mahommah Gardo Baquaqua, único escravizado a escrever a própria biografia em mais de 350 anos de escravidão negra e africana no Brasil, raridade num universo de fontes formado basicamente por registros deixados pelos brancos. Acessamos a história da escravidão por meio do olhar dos escravistas, aqueles que choramingava para poder manter a mão de obra na senzala e sob torturas, nos lembra Laurentino.
Num país arquitetado a partir do trabalho escravo, encontramos uma elite econômica que não deseja o Estado regulando o que fazer com vidas reduzidas à condição de escravizados, mas aceita de bom grado o pacote de maldades oferecido pelo mesmo Estado para subjugar negros: prisão com trabalhos forçados, degredo para territórios na África, açoitamento... Quando aumentaram as pressões internacionais para o fim do tráfico negreiro pelo Oceano Atlântico, ali estava o governo brasileiro pronto para desprezar as próprias leis e ajudar os bandidos a seguirem com seus negócios desumanos.
"Os traficantes moravam em algumas das casas e mansões mais suntuosas das cidades, frequentavam missas e participavam das irmandades religiosas mais importantes, compareciam às cerimônias oficiais e contavam com a amizade das mais altas autoridades. Recebiam honrarias e condecorações pelos relevantes serviços prestados ao Império brasileiro. Legalmente, pelos termos do acordo de 1826 ratificado por lei brasileira de 1831, eram todos piratas e contrabandistas, passíveis de serem presos e punidos com anos de prisão. Apesar disso, eram tratados como pessoas respeitáveis e admiradas na corte do Rio de Janeiro", registra Laurentino.
O amálgama entre elite política e elite agrária, capaz de rever ou desprezar leis e barrar movimentos de avanços sociais e humanitários, é outra ponta a conectar aquele Brasil com este. E há mais, bem mais. A naturalização do que é bárbaro, a convivência cotidiana com o horror, ganhou novas aparências, mas, na essência, segue a mesma lógica de quando moradores do Rio de Janeiro, por exemplo, viviam numa cidade cheia de construções onde eram guardados "estoques" de escravizados. O racismo também prossegue. Em certa altura, importante sublinhar, Laurentino defende: ao contrário do que acreditava no começo dos trabalhos para a trilogia, os negros brasileiros e indígenas foram e continuam sendo, sim, vítimas de um processo sistemático de genocídio.
No sentido oposto, aprofundar-se em determinados períodos de nossa história é ter a oportunidade de conhecer pessoas que merecem respeito. Falei de Mahommah, falo também dos Caifases, integrantes de uma célula revolucionária atuante em São Paulo nos anos que antecederam a Lei Áurea de 1888. E poderia mencionar muitos outros humanistas e abolicionistas a partir de "Escravidão". Porque a luta contra a bestialização, a luta por um país mais justo e digno para todos, é outro ponto de contato entre o Brasil do passado e o Brasil de hoje.
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