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Felipe Neto e o racismo em Moby Dick: como lidar com livros incômodos?

Ilustração baseada em Moby Dick, livro que incomodou Felipe Neto - Reprodução
Ilustração baseada em Moby Dick, livro que incomodou Felipe Neto Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

03/08/2022 13h22

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Felipe Neto compartilhou a angústia no Twitter: "Queria perguntar uma coisa pra quem entende verdadeiramente de literatura. Vi parágrafos profundamente racistas em 'Moby Dick', continuei a leitura do livro de nariz torcido, estou realmente incomodado. O livro é de 1851. O que é recomendado em casos assim? Como vocês avaliam?".

"Moby Dick" é um clássico de Herman Melville e um dos romances fundamentais da literatura dos Estados Unidos. Ficção com ecos bíblicos e narrada pelo marinheiro Ishmael, nela o leitor acompanha a saga do capitão Ahab para acertar as contas com Moby Dick, enorme cachalote albino que havia destroçado a perna de Ahab numa caçada marítima anterior.

E o que fazer quando nos deparamos com o racismo ou qualquer outra podridão moral nas páginas de um livro, seja ele clássico ou não? Sei que estamos numa época de pouca disposição para lidar com o que é complexo e muito ímpeto para julgamentos sumários acompanhados de gritaria virtual. Mas, ora, se a leitura é boa apesar de (ou graças aos) incômodos, siga em frente. Não creio que alguém largue "O Estrangeiro", de Albert Camus, ao descobrir que está acompanhando os passos de um assassino.

O bom leitor tem consciência de que a arte não está aí para ser um monumento de boas intenções, um manual de conduta, um compêndio de ideias que nos agradam ou uma série de lacrações para chegarmos ao final e tirarmos uma foto para compartilhar nas redes sociais com um "disse tudo! Perfeito". E deixo para educadores e pedagogos a conversa sobre como usar certos livros em sala de aula; a leitura didática não é o foco desta coluna.

Há pelo menos dois pontos para se observar na aflição de Felipe. Ele mesmo já resvala no primeiro. Estamos diante de um livro de meados do século 19, publicado uma década e meia antes da abolição formal da escravidão nos Estados Unidos. É comum que ficções literárias reflitam visões de mundo, ideias e contextos sociais de suas épocas.

Cabe ao leitor observar e analisar como o autor trata do assunto (edições com um bom material de apoio costumam dar uma força). Eventuais críticas são tão possíveis quanto bem-vindas, claro, nada é sagrado na literatura. Só não é muito inteligente esperar que todos os autores de todos os tempos abordem certas questões da forma como o leitor, de sua casa no século 21, gostaria de ver. O desconforto é parte da caminhada de quem vive junto aos livros.

Há ficções que afagam, há ficções que nos dão bordoadas, daí chegamos ao outro ponto. Se o racismo persiste, é natural encontrarmos personagens racistas também em obras contemporâneas. Alberto Manguel, bibliófilo e ensaísta argentino, certa vez escreveu: "Mente quem diz que a leitura é uma forma de evasão da realidade. A leitura esfrega o mundo no nosso nariz".

O mundo é esfregado em nosso nariz quando encontramos na literatura aspectos do que há de pior na humanidade. E esse também é o papel da arte: revelar e nos colocar em contato íntimo com o que há de fétido no mundo. Os personagens odiáveis e repugnantes de Michel Houellebecq, Ariana Harwicz e Edyr Augusto, autores em atividade, estão aí como bons exemplos do que falo.

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