Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Miró da Muribeca: será que Deus também tem dúvidas?
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Deus largado pelas ruas de Recife
não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu
será que Deus também tem dúvidas?
nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
são quatro dias
que Deus não tá nem aí
aí, na quarta-feira de cinza
Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo
Gosto de como Deus aparece como uma espécie de camarada mundano e falível em poemas de Miró da Muribeca. Aí está "Carnaval", do livro "aDeus", publicado pela Mariposa Cartonera, como exemplo disso. Não conhece Miró? Pois também gosto de como Isabel Lucas o introduziu em um dos ensaios de "Viagem ao País do Futuro" (CEPE), beleza de livro que mistura descobertas por cidades com crítica literária e tentativa de compreender o Brasil:
"Miró da Muribeca é o nome de um poeta alegrista. Quem o conhece sabe o que isso quer dizer. Faz poesia na rua, próxima da crônica social. Satírica, mordaz, às vezes triste, com raiva. Miró vive no Recife e é um poeta, 'um preto filho de analfabetos', como diz, que não cumpriu o sonho da bola, mas descobriu a arte com Carlos Drummond de Andrade. Solitário, sem casa, é um deslocado".
Miró se foi no último domingo, aos 61 anos. Há tempos pererecava com a saúde fragilizada. Nunca é tranquila a vida de quem vive na e das ruas. Impossível dissociar o trabalho do poeta das esquinas de Recife, cidade que o moldou e que, no sentido contrário, ele ajudou a definir. Miró esteve e seguirá "na boca de ouro e na boca banguela da capital pernambucana. Miró é aquele poeta recitado de cor pelas ruas, bares, mercados e repartições", como escreveu Xico Sá numa coluna de dezembro de 2017 para o El País.
Xico comentava que Miró reproduzia um fenômeno que só tinha visto acontecer com Augusto dos Anjos: ele era "dito em voz alta por todos os escalões sociais". Por conta do olhar para os problemas e para as belezas das ruas da cidade, para o descaso e para o amor, para o íntimo e para o público, Miró se enxergava mais como cronista do que como poeta. Miró dizia escrever para o cara que varre a rua, dizia escrever para o engenheiro, para o psicólogo. Dizia escrever uma poesia completamente fácil para que todo mundo pudesse entendê-lo.
Admirado também pelo talento cênico, pela força de seus versos falados, sussurrados ou bradados, e tratado como uma espécie de camelô dos versos, Miró se orgulhava de viver da palavra "neste país em que quase ninguém lê". Entre edições artesanais e, depois, trabalhos feitos por editoras bem estabelecidas, deixou a obra em quase duas dezenas de livros. "Miró Até Agora" (CEPE), de 2013, foi um marco importante por reunir num só volume 11 títulos publicados entre 1985 e 2012. Já "O Céu é No 6º Andar" (Claranan), do no passado, acabou por ser a sua despedida.
Fica a arte.
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