Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Entre impérios, violências e paixões: uma cativante história do livro
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"Os nobres romanos com aspirações culturais podiam ir aos mercados bem abastecidos da capital em uma manhã qualquer para comprar um intelectual grego do seu agrado, que poderia educar seus filhos ou, simplesmente, lhes daria o prestígio de ter em casa um filósofo de plantão".
Com algo de "Vamos Comprar um Poeta", novela do português Afonso Cruz (Dublinense), a venda de intelectuais na Roma Antiga é apenas uma das muitas informações surpreendentes que encontramos ao longo de "O Infinito em um Junco", inesperado fenômeno editorial da espanhola Irene Vallejo recém-lançado no Brasil pela Intrínseca (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht). Ainda que não seja um daqueles best-sellers com milhões de exemplares vendidos, é admirável ver um longo ensaio sobre a história do livro, escrito por uma filóloga mergulhada nos estudos do mundo clássico, traduzido para mais de 30 línguas.
Cativante, o trabalho de Irene é uma celebração do pensamento, da inteligência e da conservação e aprimoramento de ideias. Entre os impérios Grego e Romano, Irene leva o leitor às origens do livro e apresenta um universo onde bibliotecas são tão desejadas quanto perseguidas e a vontade de reunir o conhecimento do mundo leva a empreitadas épicas. Fala de um tempo em que símbolos de sabedoria podiam funcionar como elementos de sedução para, quem sabe, aproximar gente de grande poder. É uma história que se cruza com revoltas, guerras, reviravoltas geopolíticas. De maneira gradual, acompanhamos a prática se alastrar e a leitura atingir o seu potencial revolucionário.
"Num mundo caótico, adquirir livros é um ato de equilíbrio à beira do abismo. Walter Benjamin chega a essa conclusão em seu esplêndido ensaio intitulado 'Desempacotando minha biblioteca'. 'Renovar o mundo velho - este é o desejo mais profundo do colecionador quando sente impulso de adquirir algo novo', escreve Benjamin. A Biblioteca de Alexandria era uma enciclopédia mágica que reuniu todo o saber e as ficções da Antiguidade para impedir sua dispersão e sua perda. Mas também foi concebida como um espaço novo, de onde partiriam rotas para o futuro", registra Irene ao escrever sobre uma das bibliotecas mais fascinantes da história, que segue a instigar a imaginação de leitores.
Saques, abusos e violências diversas integravam o leque de ações que deu origem a acervos históricos. Se "O Infinito em um Junco" nos ajuda a compreender por que o livro é, até hoje, reconhecido como um objeto transcendental, digno de veneração, a leitura da obra também nos mostra que a história desse sinônimo de sabedoria nunca foi serena. Numa epopeia engendrada por copistas, bibliotecários, filósofos, vendedores ambulantes, abastados entusiastas, detratores furiosos e, claro, leitores, o acumulo do conhecimento humano se fez acompanhado de sangue.
"Nós preferimos ignorar que o progresso e a beleza incluem dor e violência", reflete Irene enquanto informa que um rebanho inteiro de vitelas poderia ser necessário para a fabricação de um único volume. Antes da invenção do papel, um livro que hoje ocuparia cerca de 150 páginas exigia o couro de entre dez e doze animais. Para a elaboração de um exemplar da Bíblia de Gutemberg, centenas de bichos precisavam ser abatidos. É uma face menos óbvia de uma história que também envolve livros usados como bombas em atentados, panfletos que espalham ideias nefastas e títulos que desencadeiam episódios macabros.
A destruição de bibliotecas como a de Sarajevo, em agosto de 1992, nos lembra de que também é possível compreender a barbárie humana por meio dessa história. "Quem aniquila bibliotecas e arquivos defende um futuro menos plural, menos discrepante, menos irônico", argumenta a autora, que conecta muito do que encontrou em seus estudos da Antiguidade com o que temos no presente. No volume, Alexandria divide espaço com acervos como o da Bodleiana e os seus depósitos subterrâneos espalhados sob a cidade de Oxford, na Inglaterra. Autores clássicos ombreiam com dos séculos 20 e 21, como Juan Rulfo, Ryszard Kapuscinski e Annie Ernaux. E a todo momento fica claro o admirável esforço de Irene para resgatar e contextualizar o papel das mulheres nessa história da intelectualidade, comumente tratada com lentes bem machistas.
No desafio de dar conta de uma saga de milênios, há momentos em que Irene se faz redundante ou transborda na escrita, prolongando passagens que poderiam ser resolvidas de forma mais breve. Certas memórias da autora e eventos mais recentes também poderiam ter sido repensados; talvez fizessem mais sentido num outro livro. Não que sejam trechos enfadonhos, mas às vezes o olhar exagerado para a contemporaneidade prejudica a coesão do trabalho de quase 500 páginas. Além disso, o lugar de onde Irene observa nossa realidade talvez esteja um tanto distante dos problemas de boa parte do mundo, vide o ar de surpresa ou de excepcionalidade demonstrado ao lembrar que ainda temos pessoas analfabetas por aí.
Ler o trabalho de Irene é uma oportunidade de notar como certas questões ganham novas roupagens com o passar dos séculos. "Sócrates temia que, por culpa da escrita, os homens abandonassem o esforço da reflexão própria. Receava que, graças ao auxílio das letras, todos confiariam no saber dos textos e, eliminando o esforço de compreendê-los a fundo, se contentariam em tê-los ao alcance da mão. E assim não haveria mais uma sabedoria própria, incorporada a nós e indelével, parte da bagagem de cada um, mas um apêndice externo", registra. A conexão com discussões sobre a utilização de plataformas como o Google é incontornável.
"Sob o dilúvio da informação, onde fica o saber"?, questiona, então, Irene. Cabe a cada um utilizar as ferramentas disponíveis para construir esse saber, mas a bela citação de Jorge Luis Borges enfatiza o papel central dos livros nesse processo: "Dos diversos instrumentos do homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões de sua vista; o telefone é a extensão da voz; ainda temos o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação".
Há uma categoria bem específica de trabalhos que me fascinam: os livros que falam sobre livros. Nesse canto da biblioteca onde muitas bibliotecas se encontram, "O Infinito em um Junco - A Invenção dos Livros no Mundo Antigo", da espanhola Irene Vallejo, merece um lugar de destaque.
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