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Saramago: vida melhor no Brasil e Nobel para dividir com Jorge Amado

O escritor português José Saramago - Fundação José Saramago
O escritor português José Saramago Imagem: Fundação José Saramago

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

24/08/2022 04h00

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Entre 1993 e 1994, José Saramago compartilhava com Jorge Amado a expectativa de ganharem o Nobel de Literatura. "Viver com Pilar e telefonarem-me de Estocolmo? Será o impossível possível?", registrou o português em seus diários. Para ele, o impossível se concretizou. Saramago viveu com Pilar del Río, sua companheira até o final da vida, e em 1998 recebeu o telefonema da Academia Sueca para informá-lo vencedor do prêmio daquele ano. Antes disso, em cartas, dividia com o grande amigo brasileiro o sonho do reconhecimento e da bufunfa. "Queres saber, querido Jorge, o que penso? Que o Nobel deveria ser-nos atribuído em conjunto, a ti e a mim, pois claro, metade para cada um. Não haveria solução melhor".

Não sei dizer se é o mais forte, mas a relação de Saramago com Jorge Amado me parece o elo mais bonito do autor de "Ensaio Sobre a Cegueira" com o Brasil. Essa camaradagem fica evidente em algumas passagens de "Saramago - Os Seus Nomes: Um Álbum Biográfico", espécie de ensaio para uma enciclopédia saramaguiana que reúne lugares, leituras, autores, reflexões e amigos que ajudam a contar a história do autor português. Para cada verbete, fragmentos da obra, de outros escritos de Saramago ou de registros de terceiros que relacionam o único Nobel de nossa língua com o assunto da vez.

Publicado pela Companhia das Letras, no livro organizado por Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel encontramos um Saramago que cogita se mudar para este canto do mundo no início da década de 1960. "Estou a encarar francamente a hipótese de ir para o Brasil, à busca de vida melhor, não de melhor vida... É certo que, com quase quarenta anos, não se pode dizer que seja cedo, mas outros para lá têm ido mais velhos e têm vingado".

Tivesse mesmo vindo, Saramago poderia acompanhar de perto os descaminhos do país que angustiavam o amigo baiano. Em 1993, referindo-se a Jorge Amado e Zélia Gattai, Saramago registrou em seu diário. "Desejam um Brasil feliz e não o têm. Trabalharam, esperaram, confiaram durante toda a vida, mas o tempo deixou-os para trás... A pátria, Brasil, Portugal, qualquer, é só de alguns, nunca de todos, e os povos servem os donos dela crendo que servem a ela".

Saramago - Os Seus Nomes, organizado por Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Para ficarmos entre os escritores, há diversos colegas de letras que mereceram atenção de Saramago. No volume encontramos o português reverenciando Franz Kafka e exaltando Jorge Luis Borges, que considerava o último dos gigantes literários, dono de uma arte que parece ter se "desprendido da realidade para revelar melhor os seus invisíveis mistérios". Por Salman Rushdie, esfaqueado semana retrasada num evento em Nova York, demonstrava preocupação: "Rushdie ficará sempre à mercê de um fanático desejoso de entrar no céu pela porta principal".

De volta aos brasileiros, há olhares para gente como Chico Buarque, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto... É especialmente bonita a entrada de Lygia Fagundes Telles. Depois de apontar o conto "Pomba Enamorada" como uma obra-prima e refletir sobre o tempo ("para o tempo não existem o antes e o depois, para o tempo só existe o agora"), Saramago recorda de uma conversa que teve com autora de "As Meninas" a respeito dos caminhos e das manipulações da memória. "Não estou muito seguro quanto à pertinência da poética para, de uma vez, tentar explicar por que insisto em dizer que conheço Lygia desde sempre. Apenas porque acho que ela é aquele pedacinho de vidro azul que constantemente reaparece...".

Repleto de imagens, "Saramago - Os Seus Nomes" chega aos leitores em meio às comemorações do centenário de nascimento do autor. Dentre outras homenagens e novidades, Pilar del Río, hoje à frente da Fundação José Saramago, está lançando "A Intuição da Ilha" (também da Companhia das Letras), livro no qual repassa os dias junto do companheiro na pequena ilha de Lanzarote, onde o escritor viveu de 1993 até a sua morte, em 2010.

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