Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Pedro Páramo e a vontade de repetir a primeira vez com certos livros
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"Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo".
Outro dia, meio que do nada, veio a vontade impossível de ser realizada: ler novamente "Pedro Páramo" pela primeira vez. Olhei para a estante e peguei a edição da Record, tradução de Eric Nepomuceno. O desejo era sentir o desnorteio da leitura inaugural, perder-se completamente entre vozes de planos distintos que cruzam o caminho do personagem que parte para Comala em busca de seu pai, o tal de Pedro Páramo.
Ainda me lembro do fascínio por aquelas páginas. Poucas vezes saí tão desconcertado de um livro. Poucas vezes uma leitura me marcou tanto. Não é por acaso que o breve romance de Rulfo se transformou em peça central da literatura latino-americana. Basta dizer: não fosse por ele, "Cem Anos de Solidão" não existiria. Não da forma como Gabo o construiu, ao menos. Autor de apenas outros dois livros breves, a reunião de contos "Chão em Chamas" e a novela "O Galo de Ouro", o mexicano é autor incontornável e inesgotável.
Impossível desvendar razoavelmente os labirintos de "Pedro Páramo" com apenas uma leitura. E, sabemos, toda releitura de algum livro também guarda algum grau de ineditismo, revela possibilidades que pareciam não estar ali antes. Ainda assim, cada leitor só tem uma única chance para desvirginar uma obra. Recorro ao surrado Heráclito: a água do rio no qual nos banhamos pode até mudar, entretanto o cenário segue muito parecido, já não é um mistério se molhar com aquela substância líquida, um pouco gelada. Se nunca somos mais os mesmos, tampouco somos completamente distintos.
Após compartilhar o paradoxal desejo, uma leitora falou que gostaria de ter a chance de repetir a primeira vez com "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar. Outra, a Eliz Oliveira (recomendo o trabalho dela), me escreveu justamente para compartilhar as sensações com "Pedro Páramo", o livro de sua vida. Leu umas oito vezes o romance de Rulfo. Somente ali pela terceira que começou a pisar com mais firmeza por aqueles caminhos áridos, fantasmagóricos. É um momento que também carrega uma porção de ineditismo.
Numa leitura recente, esbarrei em algo que deixou o paradoxo ainda mais complexo. Com "Figurações", reunião de ensaios da escritora e crítica literária argentina Sylvia Molloy que acaba de sair por aqui pela 34 (tradução de Gênese Andrade), a questão deu novos pulos em minha cabeça. Num artigo sobre Jorge Luis Borges, Sylvia questiona: "Houve, algum dia, uma 'primeira vez' em que experimentamos o texto de Borges?". Ela continua:
"Sim, como quanto a Veneza, houve uma primeira vez e não (também como com Veneza) não houve nunca uma primeira vez porque Borges, como Veneza (ou como Kafka, ou como Paris, ou como qualquer locus de cultura), esteve desde sempre, sempre já lido, disseminado em peças heterogêneas em direção ao passado como em direção ao futuro".
Sendo assim, jamais leríamos de verdade os gigantes pela primeira vez porque, em diálogo com a ampla tradição cultural, reconhecemos muito do que encontraremos em suas obras antes mesmo de iniciar a leitura. Só para ficar numa amostra banal: é muito improvável que em 2022, por exemplo, um brasileiro leia pela primeira vez Machado de Assis sem ter em mente parte substancial do que encontrará nas páginas consagradas do Bruxo do Cosme Velho. Pensando em "Pedro Páramo", ir a Comala de Rulfo depois de perambular pela Macondo de "Cem Anos de Solidão" não deixa de ser uma forma de ter alguma familiaridade com o breve colosso do mexicano.
Minha primeira leitura de "Pedro Páramo", aquela que gostaria de repetir, então jamais existiu ou começou antes de eu tocar no livro? É de se pensar.
*
Recomendo: nesta sexta, dia 23 de setembro, haverá um bate-papo com a filósofa Sueli Carneiro no Theatro Municipal, em São Paulo. Começará às 18h e terá entrada gratuita, com ingressos que podem ser retirados uma hora antes da mesa. Quem mediará a conversa será o editor Marcos Marcionilo, curador da 64ª edição do Prêmio Jabuti. O encontro faz parte da série de eventos que antecedem a cerimônia de premiação do Jabuti, prevista para a segunda quinzena de novembro.
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