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Sem soco, com ideologia: o longo papo entre García Márquez e Vargas Llosa
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Quando, numa festa no México, Mario Vargas Llosa desceu o braço em Gabriel García Márquez e deixou o autor de "Cem Anos de Solidão" com o olho roxo, a coisa azedou de vez entre dois dos maiores nomes da literatura latino-americana. A famosa porrada de 1976, contada com ar futriqueiro em "Solidão e Companhia", de Silvana Pastnostro (Crítica), fez com que Gabo e Llosa tomassem de vez caminhos diferentes, esgotando a relação que já vinha conturbada por conta de divergências políticas e ideológicas. Década antes, o trato entre os dois era bastante diferente.
Irá se decepcionar o leitor que pegar "Duas Solidões - Um Diálogo Sobre o Romance na América Latina" ávido por um embate (mesmo que de ideias, não de socos) entre Gabo e Llosa. Ainda que divergências existam, é um papo cortês, com um Llosa generoso, como destaca o tradutor Eric Nepomuceno num dos textos de apoio do volume recém-publicado pela Record, que ainda conta com artigos de Pilar Del Río e de Socorro Acioli.
"Duas Solidões" é a transcrição dos encontros que os autores tiveram em setembro de 1967, no Peru, apenas três meses após o lançamento de "Cem Anos de Solidão". Aos 31 anos, Llosa era um estudioso da obra de Gabo (logo publicaria "García Márquez: História de um Deicídio", outro recém-lançado por aqui) quando conduziu duas sessões de entrevistas com o colombiano, na época com 40 anos. Ainda que haja boas colocações do autor de "A Festa do Bode", as ideias do Nobel de Literatura de 1982 dominam a maior parte do volume.
Para que servem os escritores? Com essa indagação Llosa engrena o papo em que passam por diversos aspectos do ofício. Estão ali detalhes da criação de "Cem Anos de Solidão", o possível impacto da crítica literária e a influência decisiva de William Faulkner. Como gostava de repetir em entrevistas, Gabo conta como as histórias vividas na infância foram levadas para seus romances e o transformaram num grande escritor.
É notável o trecho em que o colombiano olha com desconfiança para o realismo mágico. Ele enfatiza: o fantástico está arraigado a diversas formas latino-americanas de compreender e interpretar o mundo, "Acho que particularmente em 'Cem Anos de Solidão' eu sou um escritor realista, porque creio que na América Latina tudo é possível, tudo é real".
São mesmo os aspectos ideológicos, então com pouco atrito entre os dois futuros nobelizados, que rendem alguns dos melhores momentos de "Duas Solidões". De cara, García Márquez revela uma visão um tanto utilitarista da literatura. Especialmente do romance, seu campo de maestria, que deveria servir para "melhorar a vida dos homens". Diz ele:
"Penso que seguramente a literatura, e sobretudo o romance, tem uma função. Agora, não sei se lamentável ou afortunadamente, creio que é uma função subversiva, não é? No sentido de que não conheço nenhuma boa literatura que sirva para exaltar valores estabelecidos. Sempre, na boa literatura, encontro a tendência de destruir o estabelecido, o já imposto, e de contribuir para a criação de novas formas de vida, de novas sociedades".
Com o caminhar do diálogo essa visão se mostra mais complexa. Para Gabo, o autor não deve se preocupar com as consequências que um livro pode ter ao chegar nos leitores. "Se isso é previsto, se é deliberada a força, a função subversiva do livro que está sendo escrito, a partir desse instante o livro já é ruim", confia. Se o escritor "tem uma posição ideológica firme, essa posição ideológica será vista na sua história, quer dizer, vai alimentar a sua história, e é a partir deste momento que essa história pode ter essa força subversiva da qual falo. Não creio que seja deliberada, mas creio que é inevitável".
Ainda no campo da visão e da posição que ocupa no mundo, o autor de "Cem Anos de Solidão" afirma, em certo momento, que "um escritor que não se contradiz é um escritor dogmático, e um escritor dogmático é reacionário, e a única coisa que eu não gostaria de ser é reacionário". E é com Gabo assumindo a admiração pelo argentino Jorge Luis Borges, notório conservador (ou reacionário), que captamos certa contradição sobre a forma como ideologias invariavelmente transpareceriam na obra. É também um dos poucos momentos de destaque de Llosa. Diz o peruano:
"Toda boa literatura é irremediavelmente progressista, mas com omissão das intenções do autor. Um escritor com mentalidade como a de Borges, por exemplo, profundamente conservadora, profundamente reacionária, enquanto criador não é um reacionário, não é um conservador. Não encontro na obra de Borges (embora encontre nesses manifestos que ele assina) nada que proponha uma concepção reacionária da sociedade, da história, uma visão imobilista do mundo, uma visão, enfim, que exalte, digamos, o fascismo ou coisas que ele admira, como o imperialismo".
Daí fico encucado: será que hoje Llosa, defensor de primeira hora de tudo o que há de mais à direita no mundo, endossaria as palavras proferidas em 1967?
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