Fantasmas, o Juízo Final de Pinochet e uma bica no papinho de anistia

Às portas do inferno, Augusto Pinochet é preparado para o Juízo Final. Diversas vítimas de sua ditadura o acusam de crimes terríveis. Se ele, a liderança máxima, orgulhava-se de saber de tudo o que rolava no Chile, que agora pague por isso. Homens o acusam de sequestro e assassinato. Mulheres o acusam de entregá-las para militares violadores sexuais. Outros fardados o acusam de traição. Uma uruguaia lembra que sua cabeça jamais foi encontrada após ter sido enterrada viva e decapitada pelos milicos. Víctor Jara canta a sua dor. Pequenos de diferentes idades também acusam Pinochet de seus sequestros e assassinatos, numa altura da história em que é inevitável o paralelo com o duro e emocionante "Crianças", de María José Ferrada (Pallas).

Um dos responsáveis pelo Golpe de Estado contra Salvador Allende em 1973 e figura central de um regime que deixou mais de 40 mil mortos, em vida Pinochet passou por uma prisão domiciliar mequetrefe já no final de seus dias, na Inglaterra. Pelo menos na arte o crápula aparece confrontado com horrores que promoveu ao longo de quase 17 anos. "Os Fantasmas de Pinochet", dos chilenos Félix Vega e Francisco Ortega, recém-lançado no Brasil pela Conrad (tradução de Delfin), coloca o ditador de frente com o terror que ele mesmo arquitetou.

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Apoiada por uma respeitável pesquisa histórica, a narrativa parte dos dias de Pinochet trancafiado em Londres e acolhido por Margaret Thatcher para, com idas e vindas no tempo, reconstituir fragmentos da trajetória do político. Traumas da infância e maniqueísmos que acompanharam o cenário global ao longo de todo o século 20 ajudam a delinear ao perfil do ditador.

Os interesses dos Estados Unidos e da Inglaterra pontuam momentos decisivos de uma história que pode apresentar aos leitores, por exemplo, aspectos pouco difundidos por aqui do papel chileno durante a Guerra das Malvinas. Num pormenor interessante, Vega e Ortega lembram quando Chistopher Reeve, então o ator que interpretava Superman, causou furor indo ao Chile para apoiar artistas ameaçados pelos militares (sobre o episódio, recomendo esta edição do podcast Radio Ambulante, em espanhol).

As relações do ditador com a Igreja Católica e, numa camada algo conspiratória, com a Maçonaria também são apresentadas antes de o leitor ver Pinochet diante das almas daqueles que barbarizou. Junto com uma última página evitável, de uma festividade ingênua, o ar personalista da obra é ponto a se ponderar. Ninguém vira um monstro sem o apoio decisivo de muita gente poderosa, e todo cupincha de mandatário assassino também merece passar pelo banco dos réus.

Difícil ler "Os Fantasmas de Pinochet" e não pensar no que rola no Brasil. Começa-se a construir um papinho de anistiar Jair Bolsonaro e seus capangas, dentre eles fãs do algoz chileno, caso o atual presidente seja mesmo defenestrado de Brasília. A ideia ecoa a leniência com os militares de nossa ditadura. Que não prospere. É bom ver justiça sendo feita na arte, mas fundamental é que a justiça seja feita na vida, com todo mundo podendo pagar por seus eventuais crimes aqui na Terra. E crimes não faltam.

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