Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Nobel certeiro: países rachados e a instigante literatura de Annie Ernaux
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Confesso: o anúncio do Nobel de Literatura de 2022 para Annie Ernaux me emocionou. Se é raro o prêmio olhar para além da produção de um pequeno punhado de línguas e países dominantes, pelo menos é ótimo ver os suecos reconhecendo uma obra potente como a da francesa. Encantei-me assim que li "O Lugar", minha primeira leitura de Ernaux, tanto que rendeu um episódio do podcast da Página Cinco sobre a escritora.
Annie é grande justamente pela maneira como investiga os fatos que marcaram profundamente a própria vida. Com razão os suecos a reconheceram "pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e as amarras coletivas da memória pessoal". Em "Os Anos", seu trabalho mais elogiado mundo afora, cruza a trajetória particular com a história política e social francesa da segunda metade do século 20. É um livro um pouco mais difuso do que os demais publicados aqui no Brasil, todos pela Fósforo.
Em "O Lugar", o foco está no modo como um abismo cultural a afasta do pai. "O Acontecimento", resenhado aqui, traz as permanentes feridas de um aborto clandestino. Em "A Vergonha", enfim, tenta voltar à infância e ao início da adolescência, aos mesmos cenários de "O Lugar", para escarafunchar as marcas deixadas pelo domingo de junho em que seu pai tentou matar a sua mãe. Por onde começar a ler Annie? Pode ver as sinopses dos livros e escolher, qualquer opção é certeira.
Se a literatura de Annie é alicerçada pelo memorialismo, a forma como ela olha para as lembranças deslocam o trabalho da autora para o eixo da ficção. A francesa sabe: há diferença entre fatos e a maneira como nossos cérebros carregam esses fatos para o resto da vida. Doses mais ou menos significativas de invenção estão na arquitetura de qualquer memória. Além disso, por meio da narrativa, Annie explicita o modo como a linguagem escrita em si é uma criação, não a simples reprodução do inalcançável real.
Convidada da Flip deste ano, há uma camada na obra da premiada que é um dilema universal particularmente caro a nós, brasileiros, neste momento em que o país está socialmente e politicamente estraçalhado. Annie nasceu em 1940 em Lillebonne, vilarejo no norte francês que hoje tem uma população de cerca de 9 mil habitantes. Cresceu e foi para a vida. Estudou na Universidade de Rouen, virou professora, conheceu um mundo muito mais vasto, complexo e cheio de possibilidades do que aquele em que foi criado.
De certa forma, é esse interesse e conhecimento por uma realidade diversa e cheia de incertezas que acaba por gerar a ruptura com o pai retratada em "O Lugar". Mais do que o conflito familiar, o que Annie mostra no livro é o abismo que pode existir entre a porção rural e agarrada a antigas práticas, tradições e convicções tão sagradas quanto imutáveis e o lado mais urbano de um mesmo país, onde certos hábitos deixam de fazer sentido, preconceitos são questionados e deus, junto de dogmas da igreja, perde força, enquanto outros elementos passam a estar na base de interpretação do mundo. Também explorado em "A Vergonha", é um nó semelhante ao que estamos metidos.
Compro eventuais brigas: Annie Ernaux é uma escolha que engrandece o próprio Nobel.
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